#84 - Queira Deus que você se apaixone, diz uma maldição cigana
a paixão segundo minhas últimas leituras
E me perdoe se eu insisto nesse tema
Mas não sei fazer poema ou canção
Que fale de outra coisa que não seja o amor(Antônio Carlos & Jocafi)
depois de ler PAIXÃO SIMPLES, é inevitável falar de paixão sem pensar em Annie Ernaux com seu relato absolutamente brutal sobre entrega e vulnerabilidade, sobre aquela sensação irrefreável de se ver na mão de outra pessoa, e eu gosto justamente como Annie Ernaux se conforma com essa condição momentânea que o acaso por vezes nos proporciona. estar de frente com o confronto não apenas do prazer da paixão, mas também com a inexorável presença da tal paixão na construção da nossa identidade é um acontecimento bombástico, eu diria. Ernaux vai contra normas que tentam domesticar tal sentimento, repensa limites entre o efêmero e o eterno que se confundem, questiona como o amor pode, ao mesmo tempo, ser um instante fugaz e um marco definitivo na existência. ela sabe e viver a paixão como um luxo em toda a intensidade do momento vivido, independentemente de sua continuidade, colocando a existência centrada exclusivamente no objeto do desejo, uma espécie de ato político que reivindica e valida o direito das mulheres de narrarem suas próprias histórias de desejo e paixão… e que maravilha isso da escrita como testemunha do desejo, não?
escreveu sobre PAIXÃO SIMPLES em um de seus textos, e me arrepiou toda ao descrever o significante da paixão aos seus olhos: “a maior resistência contra o capitalismo que existe, já que ela é anti-produtiva, você não quer trabalhar, só ficar transando; anti-família, já que você não quer pagar conta e ter filhos, quer só ficar ali vivendo aquela coisa, aquela pessoa. É um sentimento em si mesmo, ela não vai para lugar nenhum, ela é destrutiva, você só quer viver aquilo e se consumir na outra pessoa e é isso.”toda essa introdução mencionado Ernaux acerca do sentimento mais desejado e temido do mundo me veio quando eu estava lendo DIÁRIO DO FIM DO AMOR, que passeia por diárias, ensaios e trechos de autoras como Virginia Woolf, Sylvia Plath, Susan Sontag, Katherine Mansfield e Marie Bashkirtsef. ainda que eu tenha apreciado muito a habilidade de Ingrid Fagundez em relembrar a importância da escrita diarística, me encantou mesmo foi a maneira como ela se utiliza do fim de um relacionamento amoroso de forma muito sutil para estampar o amor como um fazer literário, uma pulsão para a arte. pensando em retrospecto, percebi comigo mesma o quanto relações amorosas já me impulsionaram para a escrita, para a aproximação com a literatura como possibilidade de dar conta de toda essa ingenuidade, frustração, expectativa, fogo e urgência que só quem viveu sabe. talvez esse movimento de escrever no diário (ou numa newsletter ou onde você quiser), seja a possibilidade de uma escuta bondosa que aceita todas as lamentações vergonhosas e infinitas que externalizamos, isso sem nenhum tipo de julgamento, permitindo a falta de filtro que um outro não pode oferecer.
e como gosto muito dessa coisa de ser monotemática, segui consumindo o objeto da paixão com o livro FOGO NOS OLHOS, lançamento de Pedro Mairal que reúne crônicas sobre o amor e outras fúrias. logo na primeira página, ele traduz a experiência universal que eu espero que você já tenha passado pelo menos uma vez na vida:
Estamos todos equivocados e caminhamos para o equívoco do amor, feito zumbis. Mas que equívoco mais saboroso, mais ardente, mais poderoso. As pessoas estão mortas e apagadas até que, de repente, se apaixonam e nelas se acendem todas as luzinhas da árvore de natal. Sentem-se desejadas, voltam a desejar, vão para a cama com alguém que as faz sentir algo que nunca ninguém as tinha feito sentir antes. Depois de uma trepada cósmica, a experiência vital passa a ter novas paisagens. E esse amante já se torna uma droga pesada, uma picada no sangue, e sua ausência, um desassossego. Queira Deus que você se apaixone, diz uma maldição cigana. (FOGO NOS OLHOS)
apaixonar-se é, enfim, permitir que um equívoco aconteça, e que esse equívoco seja também uma espécie de milagre? vai doer, vai passar e vai virar memória. e acho que essa memória será sempre uma lembrança viva e saudosista porque um dia fomos inteiros no olhar de alguém, e em que momento nesse redemoinho de gente moída por um sistema atroz existe espaço para tanto? ler sobre escrita e paixão me leva a confrontar as complexidades dessa bagunça e também reconhecer a universalidade da experiência mais humana que existe, que é coletiva mas também bastante individual considerando que a paixão não precisa ser correspondida para ser total, é bonita por se sustentar sozinha, por se dar inteira ainda que na ausência. parece meio ridículo quando pensei, mas é verdade.
esse sentimento que quase sempre não tem sentido nenhum é capaz de tirar o sono ao mesmo tempo que proporcionar as melhores noites já dormidas, parece preencher um buraco que veio embutido na gente desde o nascimento, pelo menos para nós, os emocionados de plantão. existe uma infinidade de buracos que não serão preenchidos e a gente vai carregando a falta pela vida inteira do jeito que dá, mas parece que ao se apaixonar, essa falta é colocada de escanteio por um tempo. ainda que não exista o preenchimento da tal falta infinita, a gente se esvazia um pouco da gente mesmo e de todas as pessoas ao nosso redor para internalizar mais daquela única pessoa: “Embora doa e seja uma tragédia, nos esvaziamos no amor”, destaca inclusive Pedro Mairal. assim como tem coisa que só sai da gente por escrito, tem coisa que só sai da gente quando agarrados pela paixão.
O desejo é um animal que se move na escuridão. Vai tateando nas sombras. Não podemos guiá-lo, nem matá-lo, nem refreá-lo. E ele vai deixando atrás de si um rastro de infelicidades, traições, humilhações, brigas, fotos, convivências, corações despedaçados, mensagens, contaminações, abortos, filhos, divórcios, mudanças, migrações, lágrimas. (FOGO NOS OLHOS)
quando eu era apenas uma jovem aprendiz, matei um dia de trabalho completamente no impulso por causa de um carinha. primeira e única vez na vida que cometi essa loucura contra o capitalismo. poucos dias depois o carinha voltou para a namorada e eu passei meses horrorosos de angústia (e culpa por ter faltado no trabalho). ainda que não tenha faltado mais no trabalho por causa de algum carinha, outras muitas ações impulsivas e absurdas me aconteceram em nome da paixão. e mesmo que por vezes eu me veja em estado de arrependimento por tanto, aceito que sentir paixão é isso mesmo de se entregar para a angústia: Não se vive sem angústia. Angústia é sinal de vida, bem ressaltou Fernanda Montenegro em algum lugar que não me lembro agora. aceito também que um pouquinho do ser mulher é isso de sentir o desejo (e todos outros sentimentos) quase de forma brutal, uma forma de autoanulação, considerando que nem precisamos da paixão para se colocar em segundo plano, certo? é terrível ser reduzida a um corpo que espera, que deseja e que sofre, é terrível se entregar para a mais pura sujeição, mas acontece desde que o mundo é mundo.
foi absolutamente certeira quando descreveu a paixão como a maior resistência contra o capitalismo. estar dominado por outra pessoa é viver uma experiência-limite, é querer aquilo mais do que qualquer outra coisa — mais do que comer, viajar, escrever, comprar uma roupa nova ou parcelar aquela mobília que preencheria um vazio na casa, porque agora não tem mais vazio nenhum pelo menos por um tempinho. trabalhar, estudar, educar um filho ou manter uma casa minimamente organizada já não parece ter qualquer importância nesse puro estado de hiperconsciência do corpo e nessa anulação quase total da razão. e ainda que o frio gostoso na barriga venha acompanhado de angústia e arrependimento e raiva e desespero e humilhação, a gente se entrega de novo e de novo, porque sabe se lá quando a vida ficará tão mais suportável e entusiasmante de novo. e como dizer não para uma experiência com data de validade feita sob medida?Vamos para a cama para nos fundir no outro, ou para tentar fazer isso, para sentir que somos quase infinitos, porque continuamos no outro, no beijo, no abraço, parece que não existe mais fronteira, que espreitamos a completude, devora-mos, somos devorados, forma-se a roda infinita, uma imortalidade que brilha de repente, e do mesmo jeito que brilha, se apaga, e ficamos com os corações a galope, jogados na cama, porém outra vez divididos nessa fusão que não aconteceu. (FOGO NOS OLHOS)
enquanto redigia essa edição, passei por um trecho de QUERIDO BABACA que parece ter caído do céu para encerrar esse longo exame ou essa tentativa de explicar o inexplicável:
Me alertaram muito sobre mim mesma. Sou feliz por ter feito tudo que me passava pela cabeça. Sentia atração por homens violentos, por caras perigosos. Essa idade passa tão rápido. Quando vejo as meninas de vinte anos, tenho vontade de dizer para elas: “aproveitem bastante”. Daqui a vinte anos, nada mais terá esse sabor de absoluto. Eu era bonita antes de isso se tornar um esporte olímpico. Não se faziam tantas perguntas — éramos muito atraentes, deixávamos os homens loucos, e as mulheres também, gostávamos daquilo. Vejo as meninas de hoje e elas têm um roteiro que beira a insanidade - pensam que são peças separadas, como se fossem bonequinhas de Lego — bunda, nariz, pés, quadril, parte interior da coxa, qualidade do cabelo, qualidade dos dentes, grandes lábios, seios, clavículas, sobrancelhas. Gostaria de tranquilizá-las — você não é um desenho animado, sua sedução não é uma conta de matemática, desencana e deixa de perder tempo: aproveite. Colecione lembranças sublimes. E dinheiro também.
Nunca me importei muito com o dinheiro. É meu único arrependimento. De resto, me pus em perigo, fui destruída. Essa é a minha história. Eu nunca soube amar sem correr risco.
E agora me apareceu esse problema pela primeira vez — a paixão não é mais uma prateleira da qual me sirvo como bem entendo. Nada me atrai, nada brilha aos meus olhos, nada mais me desconcerta. Eu preferiria sofrer e morrer por um amor não correspondido, preferiria ser rejeitada, traída, humilhada, maltratada, preferiria qualquer outra mágoa de amor-próprio a esse tédio. (QUERIDO BABACA)
Quero compartilhar cada frase da sua news. Obrigada por isso
sou monotemática do mesmo assunto haha. amei sua reflexão sobre a paixão ser uma espécie de resistência, um ato corajoso de sentir a vida extrapolando a razão.