#12 - a paixão em annie ernaux
o livro, a adaptação cinematográfica e uma artista que intensificou ainda mais toda a experiência
Paixão Simples é praticamente uma declaração de amor ao ato de se apaixonar e eu deixarei aqui minha declaração ao ato de ler algo tão honesto.
cheguei a comentar um pouco no instagram a experiência intensa de ler O Jovem e Paixão Simples, mas este último me pegou de tal forma, que só por lá não foi o suficiente. quase que como um período da vida resumido ao desejar o outro, Paixão Simples é o relato do estado de enamoramento da autora que passeia desde os momentos bonitos e gostosos do ato de se apaixonar, até aos mais intensos, em que o chão se abre sobre nós, a lucidez se esvai e até o contato com a realidade fica mais difícil. aqui, não existe vergonha em assumir aquele papel de bobo que supostamente nos coloca em desvantagem, inferioridade, ao mesmo tempo que demonstra uma autenticidade absurda por revelar sentimentos que estão dentro de todos, mas que poucos parecem ter coragem de assumir e demonstrar. Ernaux reverbera a indignação que todos vivenciamos em algum momento: como aquele outro é capaz de ter tamanho poder sobre mim?
já divorciada e mãe de dois filhos, Ernaux se envolve sexual e romanticamente com um homem casado, do qual esperava um telefonema, uma vista e qualquer doação de tempo, ao ponto do desejo transformar todo seu cotidiano, suas convicções e costumes a partir dele… ou melhor, a partir da sensação de entrega e completa obsessão pelo ato da paixão. em determinado ponto da narrativa não linear, o relato torna-se quase uma representação do desespero humano, da dor e solidão, da incompletude. ao mesmo tempo que joga luz sobre a importância de sentir tudo que há pra sentir nessa vida, a obra também revela como um objeto de desejo pode subjugar, desestruturar e ser o motivo da ruína de alguém que resume sua vida pelo outro. acredito que os trechos escolhidos abaixo ilustram bem o que quero dizer:
“Há seis meses ele foi embora da França e voltou para seu país. Talvez eu nunca mais o encontre. No começo, quando acordava às duas da manhã, achava que daria no mesmo viver ou morrer. O corpo inteiro doía. Queria arrancar a dor, mas ela estava por toda parte. Desejava que um ladrão entrasse no meu quarto e me matasse.” (PAIXÃO SIMPLES)
“Queria a todo custo me lembrar do corpo dele, dos fios de cabelo aos dedos dos pés. Conseguia ver, com precisão, os olhos verdes, a mecha balançando sobre a testa, a curva dos ombros. Sentia os dentes, a parte interna de sua boca, a forma de suas coxas, a textura da pele. Pensava que era muito estreito o limiar entre essa reconstituição e uma alucinação, entre a memória e a loucura.” (PAIXÃO SIMPLES)
"Perguntar se ele “mereceu” ou não isso tudo não faz nenhum sentido. E constatar que essa história começa a ser para mim tão estranha quanto se tivesse acontecido na vida de outra mulher não altera em nada o fato de que, graças a ele, eu me aproximei do limite que me separa do outro, a ponto de ás vezes imaginar que iria chegar do outro lado. Passei a medir o tempo de outra forma, com todo o meu corpo. Descobri do que podemos ser capazes, ou seja, de tudo: desejos sublimes ou mortais, falta de dignidade, crendices e condutas que eu julgava insensatas nos outros uma vez que eu própria não as havia experimentado. Sem saber, ele estreitou minha conexão com o mundo." (PAIXÃO SIMPLES)
assim que finalizei a leitura, me encontrava tão imersa aos sentimentos de Ernaux, que corri para assistir a adaptação disponível na NETFLIX, nomeada de PURA PAIXÃO.
apesar de certas ressalvas, o filme me pegou tanto quanto o livro, inclusive pelos trechos perfeitamente destacados em conversas da protagonista com uma amiga ou simplesmente nas ações executadas ao longo do filme, que representam perfeitamente toda a obsessão e intensidade que Ernaux conta em sua obra.
com um roteiro sem grandes nuances e cenas regadas de sensualidade e erotismo, a proposta é muito mais do que apresentar as delícias de se apaixonar, pois se extende também nos perigos inevitáveis de se perder no outro, que nos destrói a existência e faz esquecer de si (ou tomar ciência de si pela primeira vez), a paixão como uma doença que cega, que desnorteia, transforma e machuca, para no fim, ensinar os limites próprios e dos outros. tanto o livro quanto o filme me conquistaram justamente pela falta de censura e limites, um verdadeiro retrato da obsessão, solidão e dependência afetiva (muitas vezes disfarçada de paixão), é capaz de fazer com as qualquer pessoa.
quero destacar ainda as artes da Hélène Delmaire, que me deparei por acaso no instagram, mas pareceram traduzir bem as palavras de Ernaux, e intensificaram ainda mais os sentimentos enquanto eu lia e observava as imagens. se Paixão Simples tivesse ilustrações, penso que essas artes seriam uma ótima escolha.




por fim, essa vibe toda de paixão e romance, me lembrou um trecho de CRÔNICA DO AMOR, da Martha Medeiros, que amo e acho bem propício destacar aqui:
“Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar. Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.”
Esse livro pega a gente de jeito mesmo, né?! Amei essa edição da news ♥️
Ah que máximo. acho que a gente leu junto, me pegou de um jeito, também! que coisa preciosa. vou ver o filme. é um assunto que estou amando me envolver e falei dele no meu texto mais recente