os mais íntimos sabem que meu nome não é apenas Catharina, mas Catharina Regina (seguido de sobrenomes longos e elegantes já evidenciando a ambição de Regina Celia Costa, minha mãe). é dela inclusive que vem o meu amor por gatos, já que nos primeiros anos de vida, me recordo de sua mania em trazer filhotes pra casa. meu amor por massas também vem dela, sendo macarrão com molho pomodoro o prato afetivo dos dias preguiçosos. apesar de boas lembranças, minha mãe é responsável pela grande bagunça e ambivalência que cresceram junto comigo. muita coisa é parte da história da Regina: alcoolismo, consumo exacerbado de outras drogas, abusos, abandonos, filhos que não criou, instabilidade, homens violentos, ansiedade e bipolaridade. a menina que recebia elogios e aplausos nas aulas, mas que pela imprevisibilidade da vida, deixou o colégio, nunca trabalhou formalmente em 50 anos de vida e encontrou consolo em qualquer coisa que lhe causasse a sensação de amortecimento. meus avós foram meus responsáveis legais desde que eu tinha 2 ou 3 anos, que assumiram a tarefa do cuidado, já que Regina estava longe da possibilidade de se cuidar de si mesma, quem dirá cuidar de mim e dos outros três filhos. entre idas e vindas, temos uma relação complicada, de rancor e distanciamento, mas também de admiração mútua.
apesar de todos os muitos pesares que marcam a nossa história, sempre apreciei sua facilidade com as palavras, mesmo que há décadas ela não tenha parado para escrever muito além das mensagens do WhatsApp e eventuais cartas pela vida. admirava ainda suas pinturas e desenhos, sua facilidade para o inglês e sua voz quando cantava Elis Regina, Rita Lee, Legião Urbana e tantos clássicos da música brasileira do qual também herdei a paixão.
durante uma conversa calorosa na semana passada, ela me disse: “Sofro por todos. Não quero sofrer por você. Toca sua vida e assuma a sua impotência” e “Você é mais parecida comigo do que pensa, só é um modelo mais aperfeiçoado”, frases gatilho para trazê-la aqui, deixa-lá falar os sentimentos para o mundo. então, finalmente lhe disse: “queria colocar um texto seu na minha newsletter. o que você acha?”. ela imediatamente afirmou que o coração estava palpitando e os olhos lacrimejados, além das seguintes frases: “Tenho muito a escrever, sempre tive a melhor em redação do colégio” ou “Gostei demais da ideia, o que não impede de eu estar suando frio. Escrever na minha opinião exige muita responsabilidade”. quando me questionou sobre o que escrever, respondi que poderia ser sobre ela, sobre mim, sobre a vida, sobre o que quisesse… e aqui está o resultado (pequenas correções foram feitas durante a transcrição):
“Quando você me convidou pra escrever esse depoimento tive que respirar fundo, muito fundo pra tomar coragem e contar um pouquinho do que sinto a nosso respeito. Além do mais, pra mim, é uma grande responsabilidade escrever a seu respeito.
Com certo temor à exposição, vi a oportunidade de me desculpar (mais uma vez) por nossos desencontros por conta da minha adicção, o alcoolismo principalmente. Entre outros fatores que acabaram por criar uma distância dolorida entre nós. Do meu lado muita culpa e impotência, e do seu, uma incrível capacidade de cuidar de si e fazer o que tinha que ser feito num caminho muitas vezes marcado pela frustração e insegurança, chegando até mesmo ao desespero. Afinal, nem você sabia o quanto era e é capaz. Sinto muito por essa sua solidão. Solidão que eu também experimentava misturada com uma raiva pelo modo como era vista pelas pessoas ao meu redor. O estigma era pesado e ainda é. A mão do vício é pesada e o julgamento também.
Não me lembro de vê-la brincando com bonecas. Aos 4 anos, você já escrevia cartinhas lindas pra mim, na tentativa inútil de me dissuadir da bebida. Talvez essa seja a lembrança que dói mais. Lembro de me perguntar de onde vinha tanta maturidade na escrita. “Será de mim?” questionava em silêncio.
Me vem então a lembrança os inúmeros prêmios de redação que eu ganhava na escola, melhor letra de música em festivais, a professora de inglês e português que chegou a contatar sua avó, pois não queria morrer antes de ver um livro meu publicado. Acredito já falecida. Do convite para um curso da própria Sarah Goldman, reitora do MIS, sem esquecer também da minha primeira e única exposição, que aconteceu na faculdade São Judas. Penso em tudo que foi interrompido pela tal “vida loca”. Choro por isso. Choro pela sua infância. Era você e seus livros. Choro pelos anos que perdi da sua vida, pela família disfuncional e desestruturada que tivemos, e em parte permanece.
As maravilhosas cartinhas que eu guardava com carinho se perderam, devido a uma série de acontecimentos ruins, e sinto como se tivesse tesouros de um valor incalculável que já não são possíveis resgatar. Sinto raiva. Choro de novo. Paro de escrever. Cansada de chororô vasculho minha mente e troco o chip. Talvez as lembranças dolorosas e a perda sejam tão difíceis de encarar que acabam se tornando o motivo pra recorrer ao maldito anestésico que te fodeu a vida inteira.
Voltando às lembranças, uma que ilumina meu dia é o seu jeito à lá Ser de Sagitário, aquela música da Adriana Calcanhotto: “Cavalga elegância/Cabeça em pé de guerra mansa.” Acho que a Calcanhotto te conhece. Seu ser parece estar em plena guerra mansa. Seu modo de questionar as coisas, contestar sem se alterar - pelo menos sem demonstrar. Desde criança aquela cara amarrada. Tentava tirar um sorrisos seu sem que você quisesse, e depois de muita insistência você simplesmente mostrava os dentes e contraia rapidamente a expressão. Te chamava carinhosamente de cavalinha. Uma responsabilidade em relação à sua vida que me envergonhava, o pé na razão que norteavam atitudes firmes. Determinação ferrenha e ao mesmo tempo uma sensibilidade tão a flor da pele que a surpreendi chorando num final de um livro ou várias durante, ou simplesmente porque não queria que tivesse um fim tamanho envolvimento. Tenho uma quase certeza que a literatura foi essencial na manutenção da sua saúde mental. Você não conseguia desviar de sentir as coisas, e ainda não consegue. Também sou assim. Contudo, você mantinha o voo e eu caia. Acho que vivemos uma louca lucidez.
E assim, travamos cada qual sua luta, unidas pela tinta na veia ou pela "farra"na papelaria, a fixação por papéis escritos, papéis em branco, canetas, canetinhas. Isso me traz uma imensa alegria… E quantos papéis eu deixava você acumular numa escrivaninha velha que encontramos abandonada na rua, já demonstrando seu amor e necessidade pela escrita. Faz parte da nossa essência o amor pela arte. Isso me orgulha. Nossa mente inquieta, nosso desprezo pela hipocrisia e o arcaico. O respeito pela arte que nos faz pensar, o belo, o revolucionário e até mesmo o grotesco. A amada arte que se sente, que se chora e se ri. E o que é arte senão a comunicação que se dá através dela de um modo ou outro, ás vezes à ponto de chorar, chacoalhar, atordoar.
Através de você e com você vejo um pouco do que poderia ter acontecido de bom comigo. Hoje entendo completamente sua dureza necessária e uma compaixão velada. Metade gente metade cavalo. Me sinto honrada ao ver e ouvir as pessoas falarem sobre você, vendo os comentários dos seus seguidores, comentários comoventes (os amo por tabela). Você é um pouco do que eu sou e será mais do que eu poderia ser. com a plenitude que não tive em outros tempo e situações. Sinto orgulho de você e até um orgulho próprio, porque não?
Sou grata pois tudo isso me ajudou a perder um pouco do meu medo à exposição, transformando essa carta no começo difícil e dolorido numa experiência extremamente compensadora e gratificante. Terapêutico. Catártico. Sobretudo, o mais importante para mim foi a oportunidade de te dizer o quanto me sinto honrada em ser sua mãe. Mãe essa que muitas vezes fez o papel de sua filha. Obrigada por essa oportunidade. Por me dar a voz e por me fazer perceber o quanto tenho ainda a dizer.”
admirei e me encantei profundamente com o movimento de José Henrique Bertolucci e Felipe Charbel nos livros O Que é Meu e Saia da Frente do Meu Sol, ao trazerem a vida que não se vê, os fragmentos do cotidiano de um membro da família aparentemente irrelevante para o mundo, mas que guardavam consigo experiências valiosas. depois dessas leituras, passei dias pensando nos meus próprios familiares, aqueles poderiam também ser um livro aberto, ter a vida vista por mim, a oportunidade que perdi de me sentar e saber mais de cada um. com essa edição, tentei algo parecido: dar voz a uma mulher que possui a excelência da escrita, ainda que não exercitada - e me encontro muitíssimo satisfeita!
transcrevendo os escritos de minha mãe, percebo que além de uma mulher que poderia ter sido, ela é uma mulher que já é e ainda pode ser.
Eu sei o quanto relações entre mãe e filha são permeadas por afetos ferozes. Tive uma relação difícil com a minha mãe. Digo tive pois, apesar dela estar viva, a demência levou sua consciência para outro lugar. Ou não. Na última vez que a vi, depois de uma queda em que precisou levar pontos, ela disse na emergência que eu estava feia, doida, mal vestida e gorda. Engraçado esses engenhos da mente, pra mim ela nunca foi tão sincera. Não porque eu fosse todas aquelas coisas, mas porque é da natureza do escorpião picar, assim como sempre foi da natureza dela aquelas alfinetadas. A diferença é que ficaram menos sutis. As pessoas querem que eu perdoe, que eu releve. E eu que nem sei se eu desamo ou odeio?
que carta mais linda. fiquei curiosa, você vai respondê-la e deixar que a gente leia também? 💜