#41 - o insólito e o estranho em narrativas breves (parte II)
Coelho Maldito (Bora Chung) e Voladoras (Mónica Ojeda)
de volta para a segunda parte de narrativas breves insólitas e bizarras escritas por mulheres, e se a edição anterior te deixou com calafrios, adianto que Coelho Maldito e Voladoras foram leituras bem mais puxadas para o horror, com cenas grotescas de causar nojinho e arrepios. Coréia do Sul e Equador ainda que tão distantes geograficamente, compartilham tantas violências em comum.
Mónica Ojeda já foi citada por aqui com Mandíbula, livro que me rendeu grandes surpresas, agonias e admiração. Voladoras reforça a grandeza da autora em retratar a violência nos seus mais diversos sentidos, seja em desejos inconfessáveis, hábitos bizarros ou crimes hediondos, principalmente no recorte feminino. sendo Mónica uma escritora latino-americana (especificamente Equador), nota-se uma semelhança com muitas outras coletâneas que passaram por aqui, bem sucedidas em se utilizar do fantástico para escancarar a violência cotidiana que normalizamos em nosso continente.
o clima soturno que domina cada uma das histórias é uma combinação do mundo real com a criatividade de Mónica, com microcosmos familiares e sociais, inconformidades frente ao estupro, ao aborto e tudo que envolve o feminicídio. as personagens respiram violência, sentem e reproduzem essa violência. sangue, obsessões, erótico, relações perigosas e toda crueldade que se destaca em trechos que arrepiam pela ousadia e vivacidade, levando a uma experiência sensorial: “Procurava partilhar o peso dos sons, da violência que permanecia como eco reverberante em seu corpo, mas intuía que para os outros a sentirem tinham de ouvir a verdade, e não seu simulacro. Ouvir o tamanho real de um grito. E que seu tamanho os quebrasse de dentro para fora.” ou “Bárbara gostava de imaginar a irmã mutilada: para que ela realmente o conhecesse. Para que, através da perda, ela entendesse o que um som era capaz de fazer com a imaginação.” e ainda “Havia momentos em que ela sentia prazer em imaginar o corte, a lâmina fina, o rosto roxo de Paula, e uma certa inquietação crescia em seu peito, embora nunca a ponto de fazê-la se sentir culpada ou envergonhada do que levava dentro de si: uma curiosidade infinita pelas mutilações, uma admiração e uma inveja inabalável de sua irmã-má.”
claro que o corpo, a pressão estética, o olhar alheio, a inveja, o envelhecimento, a indiferença social e o ódio que corpos femininos ainda recebem além de tantos outros elementos presentes na vida das mulheres, ganham destaque nos contos que se sustentam com personagens contraditórias, cruéis ou simplesmente humanas. dois dos momentos mais marcantes das histórias aqui reunidas, reverberaram por dias e dias na minha cabeça, e foram justamente essas passagens que tornaram Voladoras uma experiência indispensável e impressionante:
“Em que não estou cercada de amor, mas de tristeza. Na enorme papada que engole completamente meu queixo. Em que não sou mais jovem nem bonita, e que ninguém nunca mais vai me desejar porque desejo é algo que só a beleza inspira, e a beleza é jovem e eu não sou mais jovem nem bonita, mas um gorila, uma orca, um bisão. Em como é horrível ser tão horrível e ainda estar tão viva e existir no meio da beleza absoluta, pra todo o sempre, esperando que alguém deseje o indesejável, pra sempre e pra sempre esperando que alguém queira meu corpo e com seu amor o torne belo. No tamanho e na cor das minhas hemorróidas. No meu umbigo que dobra e fecha por causa da gordura na minha barriga. Na minha ausência de cintura. Na queimadura do meu pé. Nas enormes asas de gordura do meu braço. Em como eu seguro minhas pernas e as abro tanto que se pode ver claramente que ele enfia o punho na minha xoxota e o ar entra e soa como um peido. Em quão longos os dois minutos e trinta e sete segundos de vídeo podem ser. No tamanho e na cor do meu clitóris. Em que nunca mais vou receber ou dar um beijo apaixonado. Na minha língua de lesma se arqueando. No jeito que eu peço pra ele me abraçar e ele não me abraça. Em que ninguém nunca mais vai me abraçar nua. Em como eu cerro os dentes fingindo um orgasmo que só eu imagino e que não me chega. Em como meu rosto está deformado e monstruoso quando eu finjo isso. Em como é patético que eu tenha pensado, a vida toda, que eu gemia, e não mugia. Na crueldade do tempo. Em que quando o vídeo acaba, a imagem que fica é a dos meus olhos brancos. No amor e na feiura. Em que a feiura sempre vence.”
“Ficava surpresa com o fato de as pessoas do bairro continuarem vivendo normalmente. Havia repórteres nas ruas, e na televisão não se falava de outra coisa senão do dr. Gutierrez e da filha dele, mas ainda assim as crianças brincavam alegremente nas calçadas, o sorveteiro sorria, as avós conversavam ao sol, os adolescentes pedalavam suas bicicletas, os pais e mães voltavam na mesma hora de sempre, jantavam e apagavam as luzes. Ela, por outro lado, não conseguia retomar sua rotina. O cotidiano lhe parecia um animal morto e impossível de ser ressuscitado. Por isso, logo desobedeceu aos conselhos dos amigos: ligou a televisão, abriu o jornal, entrou nas redes sociais. Lá, as pessoas falavam sobre a brutal decapitação de uma garota de dezessete anos, de como o pai dela, um homem de sessenta anos e renomado oncologista, a havia matado. Falavam de feminicídios nas classes média e alta, mas, sobretudo, da forma como o crime foi descoberto: de como o dr. Gutiérrez enrolou a cabeça da filha com plástico e fita adesiva; de que ficou, como apurado pela perícia, jogando bola com ela por quatro dias no quintal de sua casa; da pobre vizinha que acordou em uma segunda-feira ouvindo os golpes contra o muro de seu jardim; de um chute fortuito que fez voar a cabeça de Guadalupe Gutiérrez em direção à casa ao lado; da vizinha que pegou o embrulho e imediatamente entendeu; do cheiro; do desmaio; da chegada da polícia; do modo como o médico se entregou, sem resistência, tomando uma xícara de chá.”
em paralelo, a coreana Bora Chung oferece a literatura como objeto de subversão através de Coelho Maldito, escrito entre 1998 e 2016 em diferentes fases da vida da autora que ficcionaliza algumas das próprias experiências dolorosas. apesar de continentes diferentes, a experiência insólita e aterrorizante de ocupar um corpo feminino é presente na mesma intensidade que Voladoras. numa proposta de fazer com que leitores sejam intimados a encarar absurdos inimagináveis e metafóricos, o doloroso em Coelho Maldito é perceber o quanto está muito além da ficção, relacionando-se friamente com a naturalização dos abusos impostos às mulheres e os diferentes tipos de violência universais aos quais somos submetidas.
em alguns dos contos, principalmente o que dá nome ao livro, há ainda um olhar aguçado para a necessidade de poder, para a ambição desenfreada em meio a uma sociedade que visa o lucro acima de tudo. gosto muito como Bora Chung abre espaço para diversas interpretações através acontecimentos que fogem de qualquer normalidade: seja por um corpo que se constrói através de excrementos dentro de um vaso sanitário ou uma mulher que engravida ao tomar anticoncepcionais em excesso e precisa encontrar um pai para o bebê, as situações se utilizam do grotesco e do estranhamento em sua essência mais pura, misturando folclore, ficção cientifica, realismo fantástico e horror, representando o sistema falho que é capitalismo, o consumismo, o patriarcado, questionando a estabilidade de instituições como a família e o casamento, tudo através de assombros e metáforas que fazem o leitor se perguntar o nível da crueldade que alguém pode chegar e o caráter destrutivo que habita nas pessoas ao nosso redor. há espaço para descrições gráficas, ácidas em meio a uma narrativa direta, seca e sem rodeios, que gera um distanciamento proposital, de tom impessoal. insuficiência, maternidade, envelhecimento, solidão, regras sociais e os avanços tecnológicos são temas caros para Bora Chung, que não hesita em provocar o nojo e a repulsa extrema na construção de cenas, como deve ser ao retratar acontecimentos tão infelizes.
“Queria que todas as coisas horríveis e injustas do mundo não acontecessem e que pessoas inocentes não tivessem que sofrer. Não posso mudar a realidade mas, pelo menos nas minhas histórias, posso matar as pessoas más e me divertir durante o processo”, diz a escritora.
que grande prazer é passar por leituras que nos tiram o sono, abrem os olhos e reviram tudo dentro da gente. em breve tem mais!