#40 - o insólito e o estranho em narrativas breves (parte I)
Causas Não Naturais (Ana Elisa Ribeiro) e Onde Vivem as Monstras (Aoko Matsuda)
não é segredo que de tempo em tempo gosto de me debruçar nas narrativas breves, principalmente em coletâneas que retratam temas semelhantes e que, naturalmente, se conectam de alguma forma. desde janeiro, é isso que tenho feito: Causas Não Naturais, Onde Vivem as Monstras, Voladoras e Coelhos Malditos são livros de contos de diferentes partes do mundo, mas que carregam semelhanças no insólito, no terror e no bizarro, principalmente quando pensamos nas experiências e vivências femininas.
em duas edições, conto um pouco sobre cada uma dessas leituras, sendo a edição de hoje dedicada para Causas Não Naturais e Onde Vivem as Monstras.
Causas Não Naturais reúne contos curtos com algo em comum em quase todos: violência urbana, mortes que acontecem de forma não natural e ainda assim, mais comuns e frequentes do que deveriam. desde espaços de intimidade em simpáticas casas da classe média até em palcos de crimes ambientais, o lirismo se destaca bem na narrativa de Ana Elisa Ribeiro, que se utiliza de questões sociais, da precariedade, perpassando inclusive os efeitos da pandemia, e assim, envolvendo não só a morte, mas o amor, a aversão, a complexidade dos laços humanos e também a relação dos humanos para com os animais.
“Pincei muitas notícias de jornal que são tão absurdas que parecem ficção. Alguns desses contos são baseados em fatos. Quando vi que estava fazendo uma coisa com essa vibração, do violento, do não natural, algo incrustado na vida da classe média, entendi que era tudo sobre um ambiente, um tipo de gente e suas mazelas. Mas alguns contos do livro fogem disso”, destaca a autora.
o primeiro conto me fisgou de cara talvez pelo destaque nos afetos e laços que não escolhemos, que nos chegam quando nascemos e nos acompanham o resto da vida. o olhar da protagonista sobre o pai viúvo, recluso e apático é de arrepiar, bem como para a mãe falecida e o contraste entre essas duas figuras: “Ele ali, ao lado do caixão, sentado e calado, quieto, com os pés levemente cruzados, chinelos, na simplicidade de sempre, mas olhando-a fixamente, como que a fazer perguntas indecifráveis. Ela queria viver, mais do que ele. Ela sabia viver, mais do que ele. Ela pedia ajuda sem cerimônias. Ela dava abraços e tinha contrapartidas. Ela ouvia as notícias pela tevê e tecia comentários mais ou menos esclarecidos. Acompanhava novelas como quem tem grandes compromissos. Ele, não. Ele não sabia bem como viver, mas continuava vivo. Parado, saliente, ao lado do caixão, visivelmente irritado quando tinha de abraçar alguém e grunhir algo depois de um “meus sentimentos”. Pensava nela jovem, ela mulher, ela mãe? E aquelas duas crianças pequenas, ativas, e o chão frio da casa, as meias coloridas, ela entre as crianças, ele sempre à espreita. Sem coragem.”.
a passagem do tempo em meio ao cotidiano, o corpo que envelhece e a solidão são temas que me fascinam, e que a autora trabalha lindamente nas várias histórias, dialogando diretamente com acontecimentos e epifanias do nosso próprio cotidiano: “Nesta vida a gente nunca sabe quando está velha. Uma boa medida é ver filho crescer, sair e entrar a hora que quer, balançando chaves que a gente custa a enfiar no buraco da fechadura. Hoje eu preciso de óculos para tudo. Para as chaves e para ler. Também acontece que, com o tempo, fui cabendo nos vestidos grandes que eu comprava. Achava bonitos, não tinha meu número, comprava pensando em nunca precisar usar. Mas uso. Fui ficando do tamanho deles, sem prestar muita atenção nos braços, nas coxas, na barriga. Enquanto isso, os meninos cresciam incontidamente, cheios de pelos e de força nas mãos grandes.”
sendo a morte o norte de cada uma das histórias, Causas Não Naturais faz sentir no íntimo a dor de uma despedida, do assombro e da finitude que nos ronda a todo momento, ainda que por vezes não pareça: “A despedida de um cadáver é estranha. Mentalizou muitas coisas que lhe queria falar, conversas que queria ter com ela, enquanto não a enterravam. Teve a sensação de que ela a poderia ouvir. Embora o corpo lacerado e recomposto estivesse ali para as despedidas formais, pensou que a tia mesma pudesse estar naquele ambiente, rondando, pairando, não sabia ao certo que verbo usar.”
destaco ainda outros dois trechos do livro que mexeram com as minhas estribeiras numa madrugada modorrenta de insônia em que eu já me encontrava devastada questionando o sentido de tudo, mas Ana Elisa Ribeiro veio para terminar de acabar comigo:
“As pessoas têm vida interior, mas nem todas a exprimem. Minha mãe era transparente, de uma infelicidade flagrante, mas muito resignada. Tanto que não chegava nem a nos contagiar, nem às outras pessoas, com seus infortúnios. Fazia parecer que estava tudo bem, o que nos dava falsas noções dela, de nós mesmos e nos deixava fraudulentamente tranquilos para viver nossas vidas sem incomodar ninguém. No entanto, olhar para minha mãe às vezes se parecia com ver um ruminante: digerindo, mascando incômodos e tristezas.”
“O açougueiro parecia não fazer esforço algum ao alisar aquela carne e ao limpá-la, tirando membranas, gorduras rijas, secas, nervos, passando o facão como se fosse em manteiga, como diria sua avó, que nunca agrediu ninguém. Mostrou, certa vez, uma faca em riste ao seu avô, mas era só ciúme, ciúme justificado. O açougueiro limava às vezes aquela faca grande e cortava tiras perfeitas, sem qualquer desgaste, e talvez fosse possível ouvi-lo assobiar um pagode enquanto limpava o rosto respingado de humores animais com a manga do avental branco. A amiga que tinha um namorado no IML dizia que eles usavam branco para ver o sangue, para vermos o sangue, para dar trabalho às mães e esposas e vender água sanitária.”
o assombro e melancolia também são presentes em Onde Vivem as Monstras (em menor grau). folclores, lendas e histórias clássicas japonesas inspiraram Aoko Matsuda a criar narrativas modernas protagonizadas por mulheres, e as monstras das curtas histórias de Aoko, fogem do sentido violentos, sanguinários ou disformes da qual estamos acostumados a imaginar. são simplesmente seres (místicos ou terrenos) que vão contra a norma, contra o que a sociedade dita como o "normal", e que justamente por isso, incomodam. com muita criatividade e inventividade, Onde Vivem as Monstras passeia entre realidade, cotidiano, fantasia e sobrenatural com histórias inusitadas ao mesmo tempo que comuns, impressionando por carregar um humor ácido junto do bizarro: uma fantasma faz serviço de babá sem ao menos ser solicitada; uma mulher encontra um crânio, leva pra casa se torna namorada do espírito da dona do crânio; um casal que leva a casa a destruição por ciúme. essas são algumas das histórias que causam aquele misto de sentimentos com a sensação de estar numa realidade paralela ou em um daqueles sonhos sem sentidos que acontecem ás vezes. tornando a experiência ainda mais intensa e identificável, foi ótimo ler as indagações e questionamentos que surgem nas personagens:
“Depois da gilete, a pele das mulheres ficava lisinha. Não era difícil pensar que era melhor assim. Mas quando foi que começou esse negócio de acharem que era melhor ser lisinha? Quem foi a primeira pessoa que achou que seria mais bonito não ter pelos e resolveu começar com isso? E por que as outras mulheres falaram ah, é, tem razão, e começaram a se depilar também? Por que é que eu, vivendo tanto tempo depois disso, continuava achando a mesma coisa? Por que, em plenos século 21, eu tinha que gastar uma grana preta e horas da minha vida no salão para me depilar?”.
excêntrico e original, Onde Vivem as Monstras é uma leitura que abraça, contagia e assusta com os dilemas da contemporaneidade na vida da mulher através do folclore japonês, reiventando narrativas por uma perspectiva feminista.
na semana que vem tem mais insólito, terror e bizarro, dessa vez com Voladoras e Coelho Maldito!
Curiosa com a parte dois. Estou estudando esse tipo de literatura pro meu rascunho de livro, gostei de ler suas impressões dessas obras.