#89 - o custo da domesticidade
ou parte dos atravessamentos que NA VOZ DELA (Alba de Céspedes) me proporcionou
Não existe pessoa livre, ninguém é livre. A liberdade acaba poucas horas após o nascimento, quando nos impõem um sobrenome, nos enxertam numa família. A partir de então já não podemos fugir, nos desvincular, ser, em última análise, verdadeiramente livres. O grande edifício do registro civil é a nossa prisão. Estamos todos esmagados naqueles livros, esfacelados, despedaçados; até as mulheres jovens, até as crianças pequenas. Nosso caminho é seguido, registrado, controlado. Aonde quer que você vá, os homens que escrevem naqueles livros a perseguem.
torço muito para que exista pelo menos uma pequena parcela de assinantes que aprecie essa minha mania de trazer longas passagens de livros (ou simplesmente longos textos). se não for o caso, talvez esse projeto de escrever newsletters sobreviva muito pouco, porque honestamente é a parte que mais gosto do momento pós leitura, isso de registrar os atravessamentos que uma obra nos causa, reler e absorver todo o encanto do que foi escrito em determinados trechos que parecem falar diretamente com a gente, que causam aquele estranhamento e o encanto profundo diante a junção de determinadas palavras. dito isso, foi quase um sufoco ter de escolher alguns trechos dentre as seiscentas páginas de NA VOZ DELA.
Alba de Céspedes não economiza, não tem medo e muito menos conformidade ao contar a história que começa com uma talentosa pianista reduzida à sombra do marido e se extende pela figura da filha, uma jovem que atravessa seus anos de desenvolvimento por uma Itália governada pelo fascismo, em busca não só de uma emancipação, mas de todos os sentimentos que a vida pode oferecer e dos quais ela se recusa ser poupada, independente do quanto lhe custe.
Livres de seus deveres ingratos, e até por um gesto de corajosa polêmica diante da vida pacata a que eram obrigadas, à tarde as mulheres fugiam dos aposentos escuros, das cozinhas sombrias, do pátio que, inexorável, esperava, com o cair da noite, a morte de outro dia de inútil juventude. Como pilastras, sustentando as casas arrumadas e silenciosas, permaneciam as velhas, ocupadas num trabalho de costura: e estas não traíam as jovens, ao contrário, as ajudavam, como se fossem afiliadas à mesma corriola. Unia-as um desprezo mudo, antigo pela vida dos homens, por sua ordem tirana e egoísta, um rancor que se transmitia, sufocado, de geração em geração. De manhã, ao se levantar, os homens encontravam o café pronto, o terno alinhado, e saíam para o ar fresco, desvinculados do pensamento da casa e dos filhos. Atrás de si deixavam os quartos abafados pelo sono, as camas desfeitas, as xícaras sujas de café com leite. Voltavam sempre no mesmo horário, às vezes em pequenos grupos, como os estudantes, já que se encontravam no bonde ou na ponte Cavour, e prosseguiam juntos, conversando; no verão, se abanando com o chapéu. Assim que entravam, perguntavam: “O jantar está pronto?”, tiravam o paletó, mostrando os suspensórios puídos, diziam: “A massa virou uma papa, o arroz está aguado” e, com uma frase desse tipo, semeavam o mau humor. Depois se sentavam na única poltrona, no cômodo mais fresco, e liam o jornal. Dessa leitura sempre extraíam auspícios funestos: o pão vai aumentar, os salários vão diminuir, e concluíam sempre: “É preciso economizar”. Nunca encontravam nada de bom no jornal. Logo saíam de novo; se ouvia a porta bater atrás deles enquanto, um minuto antes ou um minuto depois, as portas batiam nos outros andares. Voltavam quando a casa estava escura, as crianças dormindo, o dia encerrado, consumido, acabado. De novo tiravam o paletó, se sentavam junto ao rádio, escutavam as discussões políticas. Jamais tinham algo a dizer às mulheres, nem sequer: “Como você se sente? Está cansada? Seu vestido é bonito”. Não contavam nada, não gostavam de conversa, de brincadeiras, sorriam pouco. Quando se dirigiam à esposa diziam: “Vocês fazem... vocês dizem...”, arrebanhando-a com os filhos, a sogra, a empregada: gente preguiçosa, dispendiosa e mal-agradecida.
me emociona essa coisa da escrita como ferramenta de consciência política e feminista que é tão presente em Alba de Céspedes, que vi e aplaudi em CADERNO PROIBIDO, e que aparece novamente e ainda mais intimamente em NA VOZ DELA. reencontrar a confissão íntima e desdobramentos de desejos nada aceitáveis de uma protagonista tão específica e melancólica, me deu aquela vontade imensa de engolir cada página, sentir cada sentimento narrado ali, mesmo que sentimentos nada agradáveis, na verdade profundamente dolorosos. a confissão íntima por si só já é bastante coisa, mas tudo se torna muito mais quando aos poucos pequenas revelações são feitas: década de 40, pós segunda guerra mundial e ascensão do fascismo.
em tom confessional, Alessandra narra a dor da vivência de acompanhar uma mãe que abdicou de si mesma para figurar no modelo tradicional de um casamento, e que depois de muito se abdicar, se coloca numa paixão irracional que ricocheteia também nessa filha, a filha que olha e deseja ser a mãe, que quer viver tudo que a mãe vive, experimentando todos os dias as tensões entre política, obrigações sociais, amadurecimento e a inalcançável liberdade negada para a mãe e para si mesma. tudo se mistura ainda com passagens profundamente brutais sobre o impulso amoroso, a paixão como sentimento avassalador e incontrolável, que parece transmitir de mãe para filha, junto à relação de admiração e reverência, a maternidade no seu estado mais complexo e ainda o convívio com um pai autocentrado e profundamente patriarcal com quem Alessandra viverá por muito mais tempo do que gostaria.
Eu te traio. Te traio, todos os dias, incontáveis vezes, com a fantasia. Não tem importância que eu te traia com a imagem de você mesmo. Porque essa sua imagem faz o que você nunca faz, diz o que você nunca diz, e portanto não é você: é outro. Do choque com esse personagem fantasioso, você sai mais empobrecido que do choque com um homem diferente de você, um estranho. Se te traísse com outro, eu pelo menos teria remorso, pesar: assim, tenho somente rancor. Você queria dormir. Você sempre dorme, depois, ao passo que eu fico acordada, pensando. Faz muito tempo que deixamos de conversar. Você não sabe mais quem eu sou, o que levo dentro de mim, o valor que atribuo a cada gesto ou palavra de amor. Desde quando era menina eu sabia o que é o amor. Pensava nisso dia e noite, diante da janela ou na caminha espremida entre os armários. Eu sei, sei tudo, sei muito bem. Todas as mulheres sabem como é o amor, ainda que às vezes finjam esquecer, se adaptar, não pensar mais nisso. Não se deve confundir o amor com um gesto banal que proporciona prazer, satisfaz, sacia, como a bebida ou o sono. Você mesmo deve me impedir de fazer isso, não deve permitir que eu me rebaixe, que juntos nos rebaixemos assim. O amor é um contínuo buscar-se, um beijar-se, um abraçar-se, fitar-se, querer se refletir um no outro a qualquer custo, um temor contínuo de se perderem justamente quando parecem estar mais ligados, ‘você me ama, Alessandra?’, duvidar sempre, ‘você me ama, Francesco?’. Não me diga que está seguro do meu amor: porque nesse caso eu te confessarei que, muitas vezes, enquanto você me possui, eu não te amo. E você não sabe disso, fica embotado, aprisionado em seu corpo, busca um objetivo preciso seu; não me ama, do contrário não me deixaria sozinha. É terrível estar só, nesses momentos. Não basta que você me queira bem. O afeto basta para justificar que eu viva com você, trabalhe com você, faça refeições com você: não justifica que eu esteja aqui deitada com você, nua, na cama.
com o suicídio da mãe, a protagonista revolta-se internamente com o status quo (sem nem notar tal insubordinação que percorre cada parte do seu ser), revolta-se com a vida entediante que a mãe era submetida diariamente, passando então a reivindicar em pequenos gestos a exigência de direitos básicos que são dispensados apenas aos homens, a dignidade que parece cada dia mais distante. gosto muito de como Alba de Céspedes deu voz aos desejos femininos extremamente inflamados e melancólicos, numa escrita tão intensa que desespera exaspera, causa sensações quase físicas diante tantos sentimentos ambíguos. é uma grande bola de neve que ainda se mistura ao luto anteriormente sentido pelo irmão que nunca chegou a conhecer e que ainda assim parece uma grande parte de sua personalidade e de seu corpo, e agora pela morte daquela que era sua confidente, sua reverência e sua força no mundo.
difícil destacar num único texto toda a força contida em NA VOZ DELA, mas não posso deixar de reiterar o grande prazer em ler a genialidade de Alba, que registra os acontecimentos históricos refletidos em vidas miúdas, a configuração familiar como prisão invisível ao mesmo tempo que escancarada, as pressões sociais e tragédias familiares que a protagonista engole cotidianamente, e principalmente a desilusão constante com o casamento e com o que deveria ser o amor, com a domesticidade forçada, com toda a tristeza gritante de habitar um corpo que deseja muito mais que deveria: “Estávamos casados havia mais de um ano: os dias se somavam aos dias, os meses, velozes, engoliam os meses, as estações mudavam. Eu dizia sempre: ‘Agora eu trabalho e depois estarei feliz, agora lavo os pratos e depois estarei feliz, agora entro na fila e depois estarei feliz’”. não me surpreende nem um pouco Alba de Céspedes ter inspirado Elena Ferrante e ambas estarem na minha lista de autoras estimáveis, e muito se vê da tetralogia neste livro, muito se vê o quanto a escrita sublime de ambas se misturam junto com a irreverência que são tão parte de personagens que ficam com a gente e nunca vão embora. sim, este é um longo apelo para que você leia Alba de Céspedes, e leia também Elena Ferrante.
Acontece-me, às vezes, temer me demorar por demais na narração dos eventos que precederam meu casamento com Francesco. Mas a verdade é que não se conheceria nada de mim, do meu caráter e, em suma, de quem sou, se eu me calasse sobre como vivi, sobre o que senti naquele tempo. Por mais obscuro e árduo que fosse, hoje aquele tempo me parece de fato o da felicidade perfeita, até porque me era dado viver ao lado da pessoa extraordinária que foi minha mãe. Segundo os cânones da moral corrente, ela não era perfeita, talvez; mas suas imperfeições, suas fraquezas e aquela piedade amorosa que movia cada gesto seu eram justamente as características que já narravam sobre ela, presente e viva, uma lenda poética. Minha mãe era distante de mim como o são os personagens dos livros, uma daquelas mulheres iguais às quais se gostaria de ser e nunca se é por completo. Se perdesse a recordação da minha infância e a dela, eu ficaria privada de tudo o que foi importante para mim, me deu alegria, e até da fábula da minha vida. Porque ainda hoje me é fácil, em virtude daquelas recordações, enriquecer as longas horas de meditação solitária que compõem meu monótono dia a dia. De resto, desde menina eu aprendera a ser feliz na solidão: éramos pobres, como eu disse, e os pobres estão acostumados a se distrair com os próprios pensamentos. Nossa pobreza, o hábito cedo adquirido de viver sempre sozinha, me induzindo a dirigir a atenção para mim mesma e para meus sentimentos, na realidade se tornou minha única riqueza. Devo, contudo, reconhecer que a importância desmedida que sempre dei a tudo isso e minha tendência natural a viver com empenho e responsabilidade foram, em grande parte, as causas da minha condição atual.