#76 - o medo de criar (ou como meu tio me levou a escrever)
“medo de criar” parece um título já esvaziado de sentido, aquela coisa clichê e repetida à exaustão para nos enfiar produtos ou cursos goela abaixo. porém contudo entretanto todavia os clichês existem por um motivo, e nesse caso, esse é o clichê dentro de mim e de um montão de gente que conheço (e admiro), um clichê que se torna clichê por sua insistência em estar presente.
meu tio Osvaldo (Vado para os íntimos) faleceu há uns três anos. fui até a casa dele com minha vó para ajudá-la a reunir os pertences e entregar a casa e ela me autorizou a levar o que bem entendesse. além de ter aproveitada muitas das plantas que ficaram ofãs, me deparei com um objeto curioso que em nenhuma hipótese imaginaria encontrar na casa desse tio: um mini cavelete com uma tela em branco. criei milhares de teorias de como aquele objeto teria parado nas mãos (ou na casa) desse tio que não dava bola para nada além do futebol, do Chaves, dos jogos de baralho e dos programas aleatórios de televisão aos domingos. teria ele ganhado ou comprado esse objeto? teria ele pensado alguma vez em pintar e desistido pelo medo de criar? o que sairia naquela tela se ele ousasse pintar? o que ele desejaria pintar?
tornou-se um dos meus objetos mais preciosos, e sempre que olho para aquela tela em branco, recordo que no fim, meu tio provavelmente nunca pintou uma tela. me pego pensando em acabar com aquela tela em branco, fazer uma colagem, um rabisco ou qualquer outra coisa em sua homenagem. ao mesmo tempo, esse objeto simples e inesperado me serve como um lembrete do medo da tela em branco e nada me parece bom o suficiente para substituir esse “nada”, porque talvez o nada precise estar ali de alguma forma e porque gosto de pensar nas possibilidades que meu tio imaginava ao olhar para o nada. nunca cheguei a classificar esse tio como uma figura fundamental na minha vida com seu temperamento nada atrativo, ao ponto de repelir crianças e adolescentes da família com sua mania de praguejar altíssimo. somente quando li Saia da Frente do Meu Sol (Felipe Charbel), comecei a matutar mais sobre essa figura, me perguntar o que o manteve recluso, me perguntar acerca da sua homossexualidade velada e pouquíssimo comentada entre os familiares, de sua vida solitária e monótona ao chegar na velhice contando apenas com minha vó e a casa de minha vó que ele religiosamente frequentava todos os dias para se sentar no sofá em frente a televisão e lavar as louças do almoço.
me lembrando desse tio e de sua tela em branco, me deparei com as artes de Ana Elisa Egreja, que talvez tenha se tornado uma das minhas artistas favoritas justamente por provar que é possível (e bonito) criar a partir do simples, e tornar esse simples algo estupidamente extraordinário, belo, colorido, marcante. se há dez anos me dissessem que eu me encantaria pela arte de uma saboneteira, talvez eu não acreditasse por ter internalizado que arte era somente o que determinado grupo autorizava como arte com determinadas características… e em que idade a gente internaliza o significado da arte?
uma saboneteira, um azulejo ou uma cozinha típica brasileira com cadeiras de plásticos pode não ser visto como arte para um tanto de gente que subestima os aspectos simples, descartando o grande acontecimento de fazer arte com o cotidiano - com as panelas e o os alimentos que por si só são ferramentas de atos criativos que executamos diariamente sem a noção de estar criando, afinal quais pessoas fazem ou são conduzidas socialmente a praticar tal arte? já uma calcinha pendurada na torneira do chuveiro me faz criar pelos menos quinze cenas emblemáticas de intimidade própria e alheia daquele “eu” que talvez ninguém ou raríssimas pessoas tenham acessado. e o que tudo isso quer dizer? e como essas coisas se relacionam com arte? onde eu quero chegar? não sei mesmo, mas é arte ainda que eu não saiba explicar o que é arte (e que bom).
e por fim, tudo isso também me levou a lembrar de uma crônica de Clarice Lispector (presente no livro TODAS AS CRÔNICAS) que ilustra mais ou menos onde eu pretendia ou achei que pretendia chegar enquanto escrevia esse texto que no meio do caminho foi se tornando várias outras coisas:
Eu estava na copa tomando um café e ouvi a cozinheira na área de serviço cantando uma melodia linda, sem palavras, uma espécie de cantilena extremamente harmoniosa. Perguntei-lhe de quem era a canção. Respondeu: é bobagem minha mesmo.
Ela não sabia que era criativa. E o mundo não sabe que é criativo. Parei de tomar o café, meditei: o mundo ainda será muito mais criativo. O mundo não se conhece a si próprio. Estamos tão atrasados em relação a nós mesmos. Inclusive a palavra criativa não será usada como palavra, nem mesmo vai se falar nela: apenas tudo se criará. Não é culpa nossa - continuei com meu café - se estamos atrasados de milhares de anos. Ao pensar em “milhares de anos à nossa frente”, deu-me quase uma vertigem pois não consigo contar sequer com a cor que a terra terá. A posteridade existe e esmagará o nosso presente. E se o mundo se cria por ciclos, digamos, é possível que voltemos às cavernas e que tudo se repita de novo? Dói-me até o corpo ao pensar que não saberei jamais como o mundo será daqui a milhares de anos. Por outro lado, continuei, nós estamos engatinhando até depressa. E a toada que a moça cantava vai dominar esse mundo novo: vai-se criar sem saber. Mas por enquanto estamos secos como um figo seco onde ainda há um pouco de umidade.
Enquanto isso a empregada estende roupa na corda e continua sua melopeia sem palavras. Banho-me nela. A empregada é magra e morena, e nela se aloja um "eu". Um corpo separado dos outros, e a isso se chama de “eu”? É estranho ter um corpo onde se alojar, um corpo onde sangue molhado corre sem parar, onde a boca sabe cantar, e os olhos tantas vezes devem ter chorado. Ela é um “eu”.
Amei o texto! Quantas histórias existem por trás desses não feitos, né? 🥹
que especial ter esse lembrete em casa 💌