em comemoração ao meu aniversário, neste 22 de novembro, aguardando a chuva que sempre chega, compartilho vinte e sete devaneios cheios de melancolia, nostalgia e afeto que espero reler daqui alguns anos (o que talvez seja uma péssima ideia, mas nesse momento me agrada). fazer aniversários é sempre uma experiência agridoce para mim: me pego nervosa esperando por alguma coisa que nem sei dizer o que, choro, me estranho, sorrio, me divirto e choro de novo. dessa vez, me sinto mais leve, sem expectativas, só com o objetivo de vivenciar um dia minimamente agradável.
depois dos vinte, tudo parece passar num borrão, como se o tempo fosse medido de forma muito desigual ao atravessar duas décadas. é difícil diferenciar uma lembrança que me aconteceu aos 22 ou aos 25 anos. a vida adulta não permite respirar e absorver devidamente os acontecimentos. me sinto cada vez mais atropelada pelo tempo.
poucas coisas me foram constantes: a absoluta necessidade de dormir com meias independente do clima, a paixão por pipoca, o imediatismo, a mania de falar gritando, a absoluta necessidade de roer os dedos ou unhas, a insegurança extrema, a decisão de jamais consumir qualquer bebida alcóolica, o costume de ler em qualquer tempo livre, o amor por felinos, a frescura com alimentos e a impaciência com meu próprio cabelo.
um dia, meu pai levou eu e meu irmão para ver os aviões decolando no aeroporto. uma ideia dele. houve uma dedicação grande da parte dele, e pegamos um ônibus entrando de carona pela porta traseira (ele nunca tinha muito dinheiro e alguns dizem que os presentes que ganhávamos dele, eram todos roubados). ao chegar no aeroporto, não vimos nenhum avião decolando. a decepção ficou muito mais evidente na fisionomia dele do que na nossa.
aos 15 anos, lendo autoras como Meg Cabot, Sophie Kinsella ou Marian Keyes, nunca passou pela minha cabeça que um dia eu desejaria ler Clarice Lispector, Virginia Woolf, Franz Kafka, Nella Larsen, Carolina Maria de Jesus, as irmãs Brontë, Simone de Beauvoir, Conceição Evaristo, Dostoiévski, Tolstoi, Dickens ou Machado de Assis. hoje, aos 27 anos, é quase impossível identificar onde houve essa mudança. acho que esse é um bom exemplo do poder do tempo.
que tipo de leitora eu gostaria de ser ao chegar nos 40 ou 50? me sentirei preparada para ler Grande Sertão: Veredas ou as peças de Shakespeare? espero ter lido quase tudo de Hilda Hilst, Dostoiévski e Tolstói, e talvez ter mais paciência do que tenho hoje para os romances de Jane Austen. com certeza terei lido Lima Barreto e Maria Firmina dos Reis. finalmente terei lido O Conde de Monte Cristo? espero principalmente estar mais segura de mim ao conversar sobre literatura numa roda (ou sobre qualquer assunto), sair da posição de ouvinte e encontrar as palavras que desejo para pontuar uma opinião.
não imaginei que antes dos trinta estaria casada e financiando um apartamento com o homem que eu amo. ainda que muita responsabilidade já me pesasse nos ombros aos quinze, duvidava que um dia de fato me tornaria adulta e teria meu próprio espaço. ainda estranho isso de construir uma vida concreta do lado de outra pessoa, trabalhar, juntar dinheiro ou simplesmente assistir os planos se concretizando. em nenhuma hipótese acreditei que realmente teria que lembrar de pagar a conta do gás e do condomínio, montar listas de supermercado pensando nos almoços da semana, usar um domingo para organizar uma casa, ser tia e madrinha, trocar fraldas, pagar a mensalidade da escola da minha sobrinha, desmarcar compromissos por conta do trabalho, planejar uma viagem, se irritar com o cesto de roupas sujas, ter colegas de trabalho, desentupir privada, montar móveis, marcar consultas médicas, assinar contratos, refletir sobre uma proposta de emprego, odiar o emprego, amar o emprego, organizar uma agenda. e se aos 15 anos eu pudesse escolher uma vida para estar, seria essa?
o que será os próximos 27 anos? estarei viva? com menos ou mais dinheiro? sozinha ou acompanhada? as mesmas pessoas que estão me escrevendo um “feliz aniversário” hoje, também serão as pessoas que estarão me parabenizando no futuro?
ouvir La Nuit n'en Finit Plus nas noites mais melancólicas e solitárias para me sentir acolhida e compreendida, mas não o suficiente para não chorar.
nas fotos de alguns anos atrás, há poucas em que sorrio de boca aberta, e nelas localizo meu dente encavalado: o maior terror e insegurança que nutri por anos. hoje até desacredito que investi tanto dinheiro energia e tempo para arrumá-lo. aquele único dente ditou completamente o resto da minha aparência e o que eu via quando olhava no espelho, e naturalmente, o quanto eu seria aceita ou adorada. um único dente tem todo esse poder?
me recordo da época em que estava obcecada em assistir filmes, a ponto de deixar de estudar para a faculdade pensando no tempo limitado que me perseguia para fazer o que de fato eu desejava. assistia cerca de sete a dez filmes num único fim de semana. um atrás do outro na ansia de compensar o dia em que não poderia simplesmente assistir aquelas pessoas aleatórias conversando numa tela.
eu leio e eu escrevo, é quem eu sou: newsletter, livros, papéis velhos, colagens, cadernos infinitos. engraçado como cada livro ou cada arte torna-se um arquivo não só de quem eu sou, mas de quem estou buscando ser. e quem eu estou buscando ser?
numa caixa em que guardo todas as cartas que já recebi, resgatei uma que dizia “Quero que você entenda que eu não tô pagando de arrependida, mas realmente me arrependo pelo que eu fiz a você, a mãe, a vó, ao Luiz e Nati passar. Eu sei que é difícil e muito doloroso pra você ver o sofrimento do vô e da vó” e uma outra que diz “é difícil não cruzar com você por algum corredor e dizer alguma coisa, ou você não vir pedir uma Coca e é mais difícil ainda quando o relógio marca 20h e eu ali te esperando na Geek, sabendo que você não vai aparecer” e mais uma “como admiro o acaso, afinal te conheci por ele, e esse acaso me fez querer ser algo seu, nem que fosse seu inimigo, mas eu quero estar sempre perto de você”. nenhuma dessas pessoas estão mais na minha vida.
vi um bebê nascer, minha sobrinha Ana Beatriz. vi ela sair de dentro do corpo da minha irmã, de dentro de sua barriga. um parto normal e aparentemente dolorido pelo tanto que minha irmã apertava minha mão.
nas fotos antigas, percebo que minha bochecha sempre esteve lá, assim como meu nariz vermelho depois de chorar, principalmente nas fotos dos meus aniversários, em que o motivo com da cara de choro era o “com quem será?”. me angustiava o momento de cantar parabéns, porque eu sabia que o “com quem será?” viria, sendo um dos momentos em que fui apresentada ao sentimento de vulnerabilidade. ainda hoje não gosto que cantem parabéns para mim, e crio teorias infinitas acerca do motivo de sentir tamanha angustia e invasão com uma tradição aparentemente boba e inofensiva.
tive muitas oportunidades de viajar com parentes mais distantes ou com projetos que me envolvi. com a família primária, nunca viajamos para além do interior ou do litoral paulista. cheguei onde eles não chegaram: Bahia, Porto Alegre, Curitiba, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Campos de Jordão, Paraty, Ubatuba, Jericoacoara, São Luis, Parnaíba e Atins. só mais recentemente pude viajar com meu próprio dinheiro, e mais uma vez cheguei onde meus pais ou avós jamais sonharam: Buenos Aires, Washington D.C, Philadelphia e Nova York.
gargalhei até a barriga doer muitas vezes em todos esses anos, e gostaria de ter uma ficha especial só para voltar nesses momentos. mas quem eu quero enganar? infelizmente usaria essas tais fichas especiais pra mudar coisas idiotas (mesmo que hoje não façam diferença alguma): uma compra inútil, uma decisão não tão decisiva assim e outras decisões mais significativas, uma resposta ou uma fala inconveniente, uma ação inconsequente. sinto tanto arrependimento de lembrar de alguns momentos (de anos atrás) que minha barriga se embrulha.
relembro os gestos interrompidos, os universos criados e fins de uma linguagem compartilhada, términos, paixões, beijos inesquecíveis e beijos indiferentes. com quantas pessoas compartilhei um momento que nunca mais fará sentido com outra pessoa?
penso frequentemente nas muitas amizades que não estão mais comigo, seja de um trabalho, da faculdade, do colégio ou de uma festa aleatória. aqueles amigos ou amigas com quem compartilhei intimidades profundas, conversas bobas, segredos de estado ou paixões arrebatadoras, com quem criei rotinas, tradições ou rituais. o fim de uma amizade é subestimado perto do fim de um romance, mas quando penso nos nomes de amigos que já não pronuncio com o mesmo significado daquela época, a angústia é insuperável.
aprendi com o meu avô o afeto pelo gesto. um homem de seu tempo, criado com treze irmãos num ambiente conservador, remoto, isolado e de extrema rigidez. um ambiente em que não existia o afeto pelas palavras ou por qualquer espécie de demonstração. meu avô nunca parou para me comprar um presente ou para dizer que me amava, que se orgulhava de mim ou para me desejar um super feliz aniversário, mas eu senti essas palavras por cada ato espontâneo do cotidiano. era ele quem me fazia buscar uma toalha para secar meu cabelo molhado com medo que eu me resfriasse, era ele quem dizia pra não andar descalça, era ele quem espremia três laranjas para o meu suco todas as manhãs e cozinhava o ovo exatamente no ponto que eu gostava, era ele quem deixava de comer um pedaço de frango ou carne no almoço para sobrar pra mim, era ele quem me levava pra cama quando eu dormia no sofá, era ele quem preparava a salada de repolho garantindo que estivesse cortado bem fininho, era ele quem garantia que o feijão tivesse bastante caldo por não saber que eu não comia o grão, era ele quem coçava minhas costas quando eu pedia, era ele quem fazia questão de manter uma geladeira com verduras e legumes pensando no nosso desenvolvimento, era nele que eu percebia um olhar atencioso ao preparar um prato e foi ele quem aguentou trabalhar de pé como vendedor nas casas bahia numa escala 6x1 durante mais de quarenta anos para garantir a alimentação, vestimenta e educação para outras dez pessoas que dividiam o teto com ele, sem nunca comprar qualquer espécie de objeto para si, e ainda esbravejar quando alguém ousava lhe dar um presente.
que alívio que a adolescência acontece somente uma vez. que angústia que a adolescência acontece somente uma vez.
uns três dias atrás, deitada na cama com meu gato acariciando suas costas enquanto via seus olhos se fechando lentamente, me dei conta que o amor incondicional que um ser inocente como um felino desperta, jamais poderia ser despertado por qualquer ser humano. parece o único amor intacto, que não corre o perigo de ser desgastado ou frustado, um amor que não cria expectativas e que é profundo justamente pela inocência.
com o passar dos anos, aprendi a não dizer “eu nunca faria”, justamente porque me vi caindo em inúmeras contradições, tomando atitudes que anos atrás eu pensava: “eu nunca faria isso”.
chegar correndo da escola e ligar a televisão no multishow para assistir os clipes do TVZ era o que eu mais adorava fazer na adolescência. a euforia de ouvir e vivenciar aquelas músicas era tão grande que eu saia dançando, pulando e cantando pela sala. tocar uma música inesperada era a melhor sensação que eu poderia sentir.
nunca vi uma pessoa morrendo ao meu lado. vivenciei o luto da morte do meu pai e do meu primo. apesar de doloroso, não foi aquele sentimento mais absolutamente doloroso e devastador. me pergunto se chegará esse momento.
me formei em psicologia imaginando que seguiria uma carreira na psicologia social, hospitalar ou penitenciária. me frustrei com a ideia de ser psicóloga antes mesmo de me formar. atuei em recursos humanos e me frustrei também. virei autônoma, administrei redes sociais, tive minha loja de colagens, retomei o hábito de escrever sobre literatura na internet com essa newsletter e no instagram, comecei a gravar vídeo e fiz publicidades. depois de tudo isso, ainda não sei o que quero com a minha vida profissional. não me surpreenderia se ano que vem eu decidisse estudar para ser chef de cozinha.
para os próximos anos, eu quero seguir metas básicas: ouvir mais podcasts, fazer uma viagem com uma amiga, usar outros tipos de calçados além de tênis e arriscar novos estilos de roupas, continuar os exercícios físicos, escrever mais registros aleatórios do cotidiano e terminar de decorar meu apartamento.
no meio desses devaneios, pensei que para além de falar sobre a minha caminhada, gostaria de saber sobre essa caminhada pelos olhos de alguém que corre do meu lado há anos. pedi para a minha amiga Juliana Masuyama (a mulher mais deslumbrante, fascinante, esplêndida e formidável que eu conheço) descrever em um parágrafo qualquer coisa que lhe viesse a mente quando pensava no meu nome, e me chegou a mais bonita declaração de amor que já recebi nesses vinte e sete anos:
“A gente sempre acaba comentando, como Clarice sempre nos lembra também, o quanto a linguagem é libertadora e limitante ao mesmo tempo. A verdade é que a gente sabe que qualquer descrição vem de um olhar distinto, de como uma realidade particular é impactada e eu só conseguiria te descrever a partir do meu amor por você. Poderia acabar soando injusta ou imparcial, o que me incomodaria caso eu não estivesse sendo completamente honesta, mas tem tanto de você em mim que às vezes me amo um pouco mais quando, muitas vezes, te percebo nas coisas que sei, nos livros que leio, nos filmes que assisto, nas músicas que eu canto. Acho que eu poderia falar da sua história e da admiração que tenho por sua paixão pela independência e a força que você tem todos os dias para lidar com a insustentabilíssima leveza do ser. Se não isso, acredito que eu falaria de como o que você produz artisticamente é feito com autoridade e sensibilidade e ao mesmo tempo que fico indignada quando você não reconhece isso, as suas inseguranças e vulnerabilidades também fazem parte de como você se expressa no mundo e eu não mudaria uma vírgula do que você é. Ou então diria sobre a intensidade de como você se delicia com os prazeres e sofre com as dores, como se a vida em sua forma ideal estivesse por um fio em todos os segundos e fosse necessário agarrar todo e qualquer sentimento, desses mesmos que somos limitados em pôr em palavras e só poderíamos transbordá-los. Afinal de contas, Catharina não se põe em palavras, seria impossível limitá-la ou libertá-la.”
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Cathi, feliz aniversário! Te desejo as coisas mais lindas possíveis!
Já te acompanho há anos e fico cada vez mais encantada com a tua capacidade de se expressar em palavras! Que texto lindo! Te admiro e espero que essa “convivência” possa inspirar cada vez mais a mim mesma e a todos os outros por essa paixão pela escrita - e, obviamente, pela leitura!
parabéns, querida! adorei esses 27 pontos <3