#63 - no sábado que passou eu não fiz nada?
colagens, leituras, filmes, documentários e gato no colo
engraçado o quanto me sinto radiante e de fato realizada com um dia que pode ser encarado como inútil, um dia em que à primeira vista, parece um dia sem fazer nada, e o que exatamente é fazer nada? não trabalhar? não executar tarefas domésticas? não ir à academia? tudo que foge do aspecto produtivo de entrega/limpeza/salário é automaticamente jogado para o campo da inutilidade? elencando alguns feitos aleatórios, me assustei com o tanto de felicidade que coube num dia de “nada”, me assustei ainda mais quando chegou a segunda-feira e pensei comigo mesma “no sábado que passou, eu não fiz nada?”.
foi um desses dias preciosos, em que não havia planejado fazer nada, mas também não havia planejado passear, trabalhar, limpar casa ou ir à academia. um sábado sem planos em que eu fiz nada mas também fiz tudo. antes mesmo tomar café, me sentei na escrivaninha para continuar um projeto de caderno colagístico temático (iniciado na noite anterior em um momento de ideia delirante de dezenas de páginas com recortes). enquanto colava, recortava e admirava as imagens com uma playlist de fundo (a música também foi 100% presente e necessária nesse dia graças a deus), pensei comigo mesmo que nada seria melhor do que esse momento, que não havia nenhum outro lugar no mundo que eu gostaria de estar além daqui, sem aquela culpa que geralmente carrego comigo de “como assim tô perdendo tanto tempo num hobbie?”
um dia que despertou com colagens espontâneas, logo se encaminhou para um passeios pelos recortes, para a coleção de papéis compostos por cartas antigas, cartões postais preenchidos, selos, rótulos e embalagens raras, folhas de enciclopédias e retalhos de documentos que amo usar para compor uma imagem, mas que amo mais ainda passar os dedos e olhar atentamente os detalhes e texturas de cada um. organizei tudo aquilo só pela desculpa de perder horas olhando retalho por retalho, verdadeiramente emocionada com meu hobby bobo de colecionar papéis aparentemente descartáveis, sendo muito deles literalmente jogados no lixo.
ao pausar um pouco a viagem pelos papéis velhos, finalmente comi e realizei poucas tarefas básicas do cotidiano (arrumar a cama, escovar os dentes, limpar a areia do gato, organizar a pia da cozinha e pensar no almoço). voltei a me sentar apenas para dar continuidade a Intermezzo, o mais novo lançamento de Sally Rooney que foi uma pedida perfeita para um dia “improdutivo”. apesar de muitas ressalvas com a leitura, devorei grande parte e destaquei trechos essencialmente sensíveis e bonitos, daqueles que dá gosto mesmo de ler e reler:
“O prazer insubstituível de conversar com ela. Só andar pelas ruas falando coisas, qualquer coisa, só o ato em si, andar juntos na mesma velocidade, e falar, apenas para divertir e agradar o outro, fazer o outro dar uma risada boba, sem buscar nenhum outro feito, nenhum objetivo grandioso, deixar suas palavras ascenderem e se dispersarem para sempre no ar úmido salobro. Por que então, ao deixá-la na porta de casa naquela noite, sentiu tanta vontade de beijá-la. O mais simples dos instintos. Um breve contato que não envolvia mais ninguém, que não exigia mais nada. Comovente por si só, um presente ao mesmo tempo dado e recebido. O que isso significa? O desejo por natureza resistindo à razão. A vontade de sobreviver, o apetite pela vida. Esses dias, ontem, na noite passada, hoje de manhã, eu quis tudo.”
“Então se lembrou da nota fiscal que não foi paga, do aluguel que vencia no fim da semana seguinte, dos empregos para recém-formados que viu no site, da teoria de abertura que não tinha estudado, do discurso fúnebre que não fizera no velório do pai, e então, antes que seus pensamentos pudessem ir ainda mais fundo no remorso e na infelicidade sombrios e debilitantes, ele pensou em Margaret. Nos dois últimos fins de semana que esteve com ela, e neste estará com ela outra vez. E ao lembrar disso no ônibus Ivan fechou os olhos por um instante e sentiu a proximidade dessa paz e descanso vindouros, a sensação de que mesmo agora estava se encaminhando para isso, de que o tempo estava seguindo adiante nessa direção, rumo ao fim de semana, quando poderia ficar perto dela, e pensou em todas as coisas que queria perguntar a seu respeito. Que tipo de livro ela gosta de ler, se era popular na escola, se gosta mais da irmã ou do irmão, se acredita em Deus, se teve muitos namorados antes de se casar ou só uns poucos. Algumas dessas perguntas ele pode fazer durante o jantar, e algumas pode fazer na cama, abraçando-a, entre um e outro beijo na boca. É, claro, havendo ou não essa mulher linda em sua vida que curte ser beijada por ele, o aluguel ainda precisa ser pago: Ivan aceita esse fato. Ainda assim, é melhor se sentir esperançoso e otimista quanto à própria vida na terra enquanto se trava a luta interminável para pagar o aluguel do que se sentir desanimado e deprimido travando essa mesma luta não opcional.”
alternei Intermezzo com seus trechos lindíssimos com a leitura de crônicas da Clarice Lispector. há algumas semanas decidi que leria aos poucos todas as suas crônicas, antes de dormir entre um livro e outro ou em momentos de tensão para espairecer porque quem lê sabe o poder dessa mulher de encantar. definitivamente não existiria nada mais propício para a atmosfera do dia que eu estava vivendo, e quero ainda trazer uma edição só para comentar as crônicas da Clarice, mas por ora destaco também dois trechos que eu seria maluca de passar por eles e não compartilhar:
“Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que Deus me ajude. Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. E estou precisando de minha própria força. Sou forte mas também destrutiva. Autodestrutiva. E quem é autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente. E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele. Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais. Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais.”
“Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça. Se no berço experimentei essa fome humana, ela continua a me acompanhar pela vida afora, como se fosse um destino. A ponto de meu coração se contrair de inveja e desejo quando vejo uma freira: ela pertence a Deus. Exatamente porque é tão forte em mim a fome de me dar a algo ou a alguém, é que me tornei bastante arisca: tenho medo de revelar de quanto preciso e de como sou pobre. Sou, sim. Muito pobre. Só tenho um corpo e uma alma. E preciso de mais do que isso. Quem sabe se comecei a escrever tão cedo na vida porque, escrevendo, pelo menos eu pertencia um pouco a mim mesma.”
no fim da tarde, dei continuidade à primeira temporada de My Brilliant Friend, que tem sido ótimo para matar a saudade dos livros, ainda que não chegue perto da tetralogia napolitana que foi um acontecimento na minha vida insuperável e só de lembrar me tremo toda. a televisão rendeu também para um outro tópico que tem me tirado o sono: a minisérie Monstros: Irmãos Menendez: Assassinos dos Pais, que maratonei assim que lançou e terminei em posição fetal debatendo por dias a bizarrice desse caso. agora que estreou o documentário O Caso dos Irmãos Menendez (também na Netflix), voltei a sentir aquela angústia terrível sobre o caso, mas isso fica para outra edição.
importante pontuar que grande parte desses momentos, além da companhia do meu companheiro que se entregava aos próprios hobbies incompreensíveis para mim, assim como os meus são incompreensíveis para ele, tive a companhia mais especial e ilustre do mundo: o gato Juca, que em qualquer oportunidade corria para sentar comigo na cadeira, no sofá ou na cama, me acompanhando em cada cômodo da casa, já que foi um dia frio, e nos dias frios ele se torna um gato quase irreconhecível de tanta necessidade do calor humano, mas não qualquer calor humano, o meu calor, e eu duvido que existirá honra maior do que essa, mesmo que um dia eu venha a ganhar um Nobel (até porque nos dias normais, ele só me procura pra brincar de morder e soltar longos miados reclamando de alguma coisa).
todo esse resumo do meu dia de sábado pra dizer o quanto a ideia de um dia produtivo se diferencia para cada um, mas que quase sempre está atrelada ao trabalho, ao movimento físico ou a uma entrega específica, e quase nunca fazendo o que a gente gosta, sem esperar nada em troca, sem que seja contenha a intenção de aprimorar as habilidades ou seguir uma rotina. o ato de sentar por horas observando e recortando imagens, ouvindo músicas, lendo e alternando livros, ver um documentário e uma série enquanto almoço e realizando pequenas tarefas do cotidiano sem pressa no meio de tudo isso, é com certeza o dia mais produtivo e desejável que eu poderia ter, muito mais inclusive do que aquele dia em que consegui entregar um projeto importante no trabalho. por muito tempo foi difícil admitir isso pra mim mesma, ainda é. o dia de sábado foi um dos poucos dias que admiti, e tô bem feliz por ele ter existido, por ter conseguido me desligar da expectativa mercadológica para simplesmente passear em tudo que gosto dentro da casa que construi para momentos como esses. gostaria de fazer “nada” entre minha cama, meu sofá e minha escrivaninha todos os dias se me fosse possível.
Que texto pertinente para uma segunda-feira!
Sempre sinto que preciso desses momentos de “nada” pra me manter criativa. Se não tenho isso, o ato de criar se parece com a tentativa de fazer nascer alguma coisa em um lugar já totalmente cheio e amontoado. É o famigerado ócio criativo, né, bom demais (e infelizmente tão difícil da gente conseguir no capitalismo 🥲)