#57 - uma imersão em Sylvia Plath
Os Diários de Sylvia Plath + A Redoma de Vidro + Euforia
reservei essa edição totalmente dedicada a Silvia Plath, que esteve presente nos meus dias principalmente com seu vasto diário, além de seu romance mais famoso e também com Euforia, escrito por Elin Cullhed, que dedica uma pesquisa meticulosa em torno da biografia e da obra de Plath para reconstituir de maneira ficcional, os últimos meses de vida da autora em forma de romance.
começo destacando uma sensação de Sylvia que também me abate com grande frequência: aquela certeza de que vou morrer antes de ler tudo que eu gostaria, vivenciar e viajar o tanto que eu gostaria, amar e desejar o tanto que eu gostaria, e apesar de ser um fato que já me conformei, por vezes me assombra aquele desespero da limitação, da finitude e da necessidade de priorizar, abrir mão e escolher:
“Para que serve minha vida e o que vou fazer com ela? Não sei e sinto medo. Não posso ler todos os livros que quero; não posso ser todas as pessoas que quero e viver todas as vidas que quero. Não posso desenvolver em mim todas as aptidões que quero. E por que eu quero? Quero viver e sentir as nuances, os tons e as variações das experiências físicas e mentais possíveis de minha existência. E sou terrivelmente limitada.”
e já que estamos falando nos diários dela, reforço o acontecimento imenso que foi adentrar os tantos questionamentos criativos, o colapso e a vulnerabilidade mental de Sylvia, que logo no inicio dos escritos, demonstra uma autocobrança cada vez mais intensa, seja a respeito da produção de trabalhos literários ou questões acerca da maternidade e casamento, numa opressão massacrante que sente diante do mundo e diante sua própria limitação: “Quanto ao livre-arbítrio, resta ao ser humano uma fresta tão estreita dele para se movimentar, esmagado que é desde o nascimento pelo ambiente, hereditariedade, época, local e convenção social. Se fosse filha de italianos e nascesse numa caverna nas montanhas eu viraria prostituta aos doze anos, pois precisaria ganhar a vida (por quê?) e aquele seria o único modo possível. Se nascesse numa família milionária de Nova York, com aspirações pseudointelectuais, teria debutado junto com as outras moças, ganharia casacos de pele, faria contatos e biquinho blasé. Como posso saber? Não posso, só me resta conjecturar. Eu não seria quem sou. Mas sou o que sou, agora; e tantos outros milhões são tão irremediavelmente suas próprias variedades específicas de "eu" que mal suporto pensar nisso.”
Sylvia é o receptáculo de frustrações e angústias, e de um sentimento que também me atormenta desde que me entendo por gente: a impotência. ler Sylvia Plath é também se ler em alguma medida, se reconhecer em algum ou muitos aspectos, relembrar o nosso sentimento de inferioridade: “Sinto inveja dos que pensam com mais profundidade, dos que escrevem melhor, dos que desenham melhor, dos que esquiam melhor, dos que têm aparência melhor, dos que vivem melhor, dos que amam melhor do que eu.” é também reconhecer a passagem do tempo que foge do nosso controle, que encanta e assusta na mesma medida: “como a vida é um movimento rápido, um fluir contínuo, mutante, como estamos sempre a nos despedir, indo a lugares, vendo pessoas, fazendo coisas”. as passagens de seus diários gritam a necessidade de uma mulher em constante busca por si mesma, pela melhor forma ainda que com todas as demarcações que uma vida em sociedade pode lhe oferecer, delimitações do desejo, de tantos sentimentos e vivências permitidos apenas para os homens: “Desagrada-me ser mulher, pois como tal devo aceitar que não posso ser homem. Em outras palavras, devo concentrar minhas energias na direção e na força de meu homem. Meu único ato de liberdade é aceitar ou recusar determinado homem. Contudo, é como eu temia: Estou começando a me acostumar e a aceitar a ideia”.
há uma tentativa constante de controle da própria vida e das próprias sensações, seja através de metas, listas, leituras, trabalho, terapias e outros recursos que supostamente a ajudariam conseguir se manter estável mentalmente, e acima de tudo, produzindo. a obra assume também um aspecto descritivo do ambiente externo, mais uma tentativa de se manter conectada ao mundo real, não se deixar levar completamente pelos devaneios que a atormentavam. a relação com a mãe e com Ted é descrita como um reforço de enxergar em si aquele sentimento de insatisfação pessoal e insuficiência para o outro, dentre muitos outros medos do qual não consegue se livrar. é nesse turbilhão, que acompanhamos uma escritora em busca das melhores palavras. Sylvia é atenta aos animais, ao cheiro da chuva, as regras sociais, ao sexo, ao tempo que corre fora de seu controle, aos demônios que a atropelam… sempre na eterna espera de um aceite de seus escritos, vivenciando desejo extremo de que o mundo leia seus livros, contos e poesias, para enfim ser dominada pela paz de saber que ela era mesmo aquilo que achava ser: uma artista.
Tenho a impressão de adquirir uma consciência cada vez mais acentuada da rapidez da passagem do tempo conforme fico mais velha. Quando eu era pequena, dias e horas eram longos e espaçosos, havia brincadeiras e imensidade de lazer, além de muitos livros infantis para ler. Lembro-me de que estava escrevendo um poema sobre "Neve" aos oito anos. Disse em voz alta: "Gostaria de ter a capacidade de registrar os sentimentos atuais enquanto ainda sou pequena, pois quando crescer saberei como escrever, mas terei esquecido como era se sentir pequena". E portanto a sensibilidade infantil para as novas experiências e sensações parece diminuir na proporção inversa do aumento da habilidade técnica. Conforme adquirimos nosso verniz, também nos tomamos duros e culpados por aceitar comer, dormir e ver, e ouvimos com excessiva facilidade e indolência, sem questionar. Tornamo-nos embotados, empedernidos e cordialmente passivos, conforme cada dia acrescenta mais uma gota ao poço estagnado de nossos anos.
Você é crucificada pelas próprias limitações. Suas escolhas cegas não podem ser mudadas; tornam-se irrevogáveis. Você teve suas chances; não soube aproveitá-las. Chafurda no pecado original; suas limitações. Não pode nem resolver dar um passeio a pé pelo campo: não sabe com certeza se é uma fuga ou um saudável refresco, pois ficou enjaulada no quarto o dia todo. Perdeu toda a alegria de viver. Pela frente há uma série imensa de becos sem saída. Está meio resolvida, meio desesperada, perdendo o poder sobre a vida criativa. Está se tornando uma máquina neutra. Não consegue amar, mesmo que saiba como começar a amar. Cada pensamento é um demônio, um inferno — se pudesse fazer tantas coisas novamente, ah, como faria tudo de modo diferente! Quer ir para casa, retornar ao útero. Vê o mundo bater uma porta atrás da outra na sua cara, anestesiada, amargurada. Esqueceu o segredo que um dia soube, ah, um dia, o segredo da felicidade, do riso, do abrir as portas.
em paralelo, A Redoma de Vidro é um clássico que conquista leitores por diversos motivos, mas dentre tantos elementos presentes no livro que marcou a literatura mundial, me admira mesmo a dimensão palpável do abuso sofrido pela protagonista Esther (ou Sylvia), massacrada pelo ambiente patriarcal brutal, imersa em dilemas que se dividem entre o sonho de ter uma carreira bem sucedida e se adequar ao lado de uma família tradicional, conforme espera-se de uma mulher de sua época. todas essas questões tão presentes que lemos em seu diário, dão sentido a redoma de vidro, que torna-se uma metáfora simbolizando o isolamento de Esther em relação ao mundo. o sufocamento latente de Esther se extende ao ponto de sentir-se incapaz de se conectar de forma autêntica com qualquer pessoa ou de encontrar sentido no cotidiano e nas próprias ações. a sensação de aprisionamento é amplificada justamente pela tal pressão constante em atender às expectativas sociais, aquela sensação intrínseca quando se é mulher, também muito latente nas passagens dos diários. com a saúde mental cada vez mais prejudicada, Esther sofre com o grande vazio existencial que permeia a vida dos privilegiados na sociedade pós-moderna, se utilizando das tentativas de suicídios como fuga de um tédio de viver na mesmice que é uma vida óbvia e ditada, fuga da constante desconexão entre suas aspirações pessoais e a realidade que lhe é imposta.
e se os diários somados a Redoma de Vidro evidenciam toda essa angústia de Sylvia, e se consagram como uma representação do que a alienação e o vazio que nascem a partir de uma vida superficialmente plena nos obriga a confrontar, Elin Cullhed mergulha profundamente na vida da escritora para compor o romance Euforia, baseado em seus últimos anos de vida. narrado em primeira pessoa, a personalidade de Sylvia é condizente com tudo que lemos nos diários, a tal ponto de gerar identificação em algum grau. Elin não hesita em expressar os sentimentos mais reais de Sylvia Plath, não somente as situação em que sofreu com Ted, com a mãe e com a sociedade no geral, mas evidenciando também o pior lado da escritora, lado que de alguma forma é um pouco nosso também: sua desconfiança, libido recalcada, insegurança, ciúmes, descontrole e necessidades possessivas que lhe geravam crises terríveis. me emocionou a forma da autora desenvolver a maternidade de Sylvia, o papel de esposa, o desejo pela escrita e pela criatividade que a impulsionavam na mesma medida que a paralisavam. toda a melancolia amarga que domina Sylvia até o limite, é presente nessa narrativa sufocante que cresce e espanta a cada página, a Sylvia arredia, falha, incoerente, irritadiça, insuportável até para si mesma está aqui completamente desnuda, e durante a leitura, doeu enxergar o quanto já me vi em Sylvia bem mais do que gostaria. Elin não deixa de registrar também o amor de Sylvia pelas palavras, pela escrita, por Ted e pelos filhos, sua ansia de viver, sentir e atravessar tudo que o mundo poderia lhe proporcionar.
finalizo a edição com indicação deste grandioso álbum de Salvia Plath (nome que obviamente referencia a autora). artista que descobri durante as leituras dos diários e não parei nunca mais de ouvir. as leituras mencionadas acima estão longe de serem classificadas como agradáveis, mas o álbum veio para me aliviar um pouco e fugir um tiquinho da atmosfera massacrante de Sylvia:
Que texto sensível, adorei a indicação do álbum da artista!
ótimo texto, aproveito para recomendar o livro "a mulher calada" que tem tudo a ver com o tema!