#56 - ser mãe e ser filha + presente para vocês

Máquina de Leite + Melhor Não Contar + Essa Coisa Viva

ago 05, 2024

edição muito especial essa aqui, viu? então leia até o final que te garanto uma surpresinha bem linda!!!!!

já levantei a pauta da maternidade alguma vezes por aqui, deixando claro o quanto o assunto me é delicado. pauta inclusive que desperta sentimentos conflituosos, complexos e contraditórios em muita gente, por isso talvez tão em evidência na contemporaneidade. por mais que eu (e tantas outras) já tenha lido e escrito muito sobre essa dor em específico, algo me mantém buscando-a sem parar, quase como um desejo obsessivo de chegar cada vez mais perto e de tocar e dar forma naquele incomodo.

textos honestos sempre me ganham e me impressionam, é corajoso expor nossas fragilidades naturais, tão essenciais quanto as grandiosidades que nos admiram. pegou muito fundo quando me deparei com o texto POR QUE EU PAREI DE FALAR COM MINHA MÃE na Revista Trip, e pensei em várias formas de trazê-lo pra cá, mescla-lo com a literatura escrita por corpos que sofrem de uma dor parecida com essa contida no texto. Flávia Monteiro escancara a própria experiência sobre ser filha, além de casos públicos de outras mulheres com suas mães, casos que geraram desconfortos por não se encaixarem no imaginário que alimentamos constantemente acerca da relação supostamente afável e perfeita em família.

Flávia me acolheu profundamente ao pontuar a dificuldade de se ver como filha, de ser mãe da própria mãe e as faltas da ausência materna que nunca serão preenchidas: “Eu sei que depressão, ainda mais como a dela, não é brincadeira. Eu imagino que ela se sentia frágil e, assim como as águas-vivas, atacava quando só queria se defender. Ela estava doendo, e tanto, que não percebia que sua dor vinha de dentro, e não de mim. Ela estava doente. Eu empatizo com ela. Mas empatizo ainda mais comigo de cinco, oito, ou 12 anos: muito nova pra aguentar tanta queimadura.”

ler o texto de Flávia e me identificar em certas situações, foi obviamente doloroso, mas acima de tudo, me causou a sensação de ser vista e compreendida, de alivio ao lembrar que aquela dor tão específica que por vezes parece só minha, é de muita gente: “Eu queria poder acolher todas as filhas de mães instáveis, de mães que não se cuidam e, portanto, não cuidam. Inclusive as filhas que hoje são mães”. Flavia ainda pareceu arrancar palavras da minha cabeça, da minha infância e meus anseios que perduram mesmo aos 26 anos, como se o vazio tivesse sido sentido ontem, porque na verdade é um vazio que vai se estender para sempre: “É claro que eu gostaria que tivesse sido diferente. Eu queria ter uma mãe pra desabafar, ou só pra fofocar, pra rir da novela, pra passar uma semana de férias juntas, pra ouvir Bethânia, pra entrar no mar. Eu sou como ela, sou feita dela, eu vim dela. Mas eu sei dos meus machucados. E sei que não vale a pena entrar só pra me queimar. Aqui fora eu me sinto segura, mas sozinha, mas segura”.

na semana em que li este texto, li também alguns livros que conversam com o dilema da maternidade e o dilema de ser filha. Máquina de Leite é narrado por uma mãe passando pelo puerpério (incrível e com certeza meu favorito desses três), enquanto que Essa Coisa Viva e Melhor não Contar, são narrados por filhas que sofreram de alguma forma com a figura materna. coincidentemente, todos os três lançados nos últimos meses pela Editora Todavia.

Máquina de Leite pode se entender como um livro sobre o luto, sobre a mulher (e tradutora e filha e amiga e esposa e colega e leitora) que deixamos de ser a partir do momento que nos tornamos mãe, sobre a entrega completa que um ser minúsculo alheio ao mundo exige, dependendo dessa mãe que é também jogada num mundo até então desconhecido, e esses dois seres em completa vulnerabilidade se entrelaçam e vivenciam uma realidade paralela, subestimada e ignorada socialmente: “Ela sequer consegue nos enxergar e não faz ideia de quem é a pessoa que a pega no colo ou do que essa pessoa é capaz de fazer. Eu também ainda não sei bem o que sou capaz de fazer”. Szilvia Molnar lança um olhar honesto para a morte do corpo individual (um corpo que tal como as máquinas, está a serviço da bebê), para as belezas, as dores, as solidões, os desgastes, as fragilidades e a extrema responsabilidade de apresentar o universo para aquela coisinha que depende inteiramente de um único ser neste universo (no mundo ideal, essa tarefa seria coletiva, remunerada e comunitária). me encantei em diversos momentos do livro com a escrita de Szilvia e a narrativa de um sentimento difuso de desnorteamento, transbordando o desespero de estar ciente das próprias limitações e do terror de nunca mais estar sozinha pelo resto da vida.

Essa Coisa Viva é escrito em formato de uma longa carta de filha para a mãe falecida, sendo a mãe uma figura repleta de realismo e honestidade: mulher marcada pela infelicidade e rancor em relação à própria vida, ao ponto de afetar toda e qualquer pessoa ao seu redor (divergente do que construímos em nosso imaginário ao imaginar a figura materna). a relação de Ana e Matilde é marcada por uma sucessão de reprovações, inveja, desestímulos, quebra da autoestima e até mesmo violências físicas. Maria Esther Maciel evidencia as dores da mãe e as dores da filha, dores de uma que ricocheteia na outra. o sentimento de ambiguidade e fragilidade é descrito com precisão, uma escrita que anseia superar todos aqueles traumas insuperáveis, encarar o luto e despedir-se definitivamente da mãe que, na verdade, jamais existiu como mãe.

Melhor Não Contar parte de experiências de abusos vividas pela autora dentro da própria casa, do despertar de uma sexualidade prematura, de um corpo que começa a ganhar contornos e imediatamente sente o peso do olhar inconveniente do outro, do luto da morte da mãe que não soube e jamais saberá de uma grande angústia presente na filha. a narrativa que pode ser vista como ensaio, diário, ficção ou carta, se mistura com o passado, com o ato da escrita em reflexão e com a elaboração do abuso que parece nunca ter passado, que ditou e dita acontecimentos na vida de Tatiana Salem Levy, refletindo assim sobre aquele medo que por vezes impede de agir, de estar no mundo e embutido em qualquer mulher que se dá conta dos perigos de habitar um corpo. muitas mulheres, após determinada situação de violência ou desconforto, também acharam melhor não contar. eu também achei melhor não contar. me lembro de pelo menos cinco amigas que acharam melhor não contar. a solidão em Tatiana e em qualquer uma de nós é tanta, que nem na própria mãe é possível encontrar acolhimento. há um trecho no livro que me parece bem propício para resumir a leitura que me atravessou de diversas formas, que escancara tudo que tentamos dar conta ao escrever: “O sangue da primeira menstruação, do parto, do aborto, da violência sexual. O sangue com o qual lidamos tantas vezes ao longo da vida e do qual vocês têm tanta repulsa.Então, penso: há tanto sangue na literatura, tanto sangue no cinema, mas é dos assassinatos, das guerras; às vezes, das doenças; nunca o que escorre pelas nossas pernas. Por que nos ensinam a ter nojo desse sangue, enquanto somos expostas a tantos outros?”.

e se você gosta tanto quanto eu de narrativas que contestam laços familiares, há outros livros que adoro e que valem muito a leitura: Açúcar Queimado (Avni Dosh), Estou Feliz que Minha Mãe Morreu (Jennette McCurdy), Corpo Desfeito (Jarid Arraes), A Estrangeira (Claudia Durastanti), Cara Paz (Lisa Ginzburg), Cinzas na Boca (Brenda Navarro), Caderno Proibido (Alba de Céspedes), Minha Vida de Rata (Joyce Carol Oates).

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antes do fim oficial, destaco aqui que 25 de junho se comemorou o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, e um dos perfis que mais adoro no instagram (sigam e enalteçam), celebrou a escrita de mulheres que enxergaram e enxergam a palavra como ferramenta poderosa de transformação:

historiaguardada