#53 - clarice lispector em dose dupla
Água Viva + Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres
Clarice Lispector passou pelas minhas leituras duas vezes neste ano (até agora). por vezes me deparo por acaso com uma de suas crônicas, algumas de suas famosas passagens ou contos, e me bate aquela vontade de largar todas as leituras do momento e voltar para ela, e bate a vontade também de compartilhar o tanto que o encontro com sua palavras me revirou. então, escrevo essa edição para matar essa saudade incontornável que só Clarice é capaz de proporcionar.
minha relação com Clarice Lispector não começou há muito tempo. dois ou três anos atrás apenas, especificamente com A Hora da Estrela. um típico amor à primeira vista. um encantamento imediato pela liberdade, pelo estranhamento da linguagem e a solidão, elementos possíveis de identificar e sentir em qualquer um de seus livros que eu viria ler a seguir, sempre admirada pela irreverência de Clarice no que a palavra tem de mais puro, e por isso, mais honesto e palpável. depois de A Hora da Estrela, me lancei em A Paixão Segundo G.H e Perto do Coração Selvagem, além de muitos dos contos. é um caminho completamente sem volta, e que bom. Água Viva e Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres foram os escolhidos deste ano para a continuação da jornada com a autora que antes me aterrorizava, e agora me acolhe.
Água Viva é mais um livro de Clarice para se ver de frente de um furacão de palavras e pensamentos aparentemente sem nexo, num labirinto em constante mutação. é bonito sentir Clarice da mesma forma que a gente sente a vida: completamente sem sentido. uma ânsia pela compreensão me dominava antes de acessar suas palavras, e hoje entendo a irrelevância do entendimento imediato: “Não encontro resposta: sou. É isto apenas o que me vem da vida. Mas sou o quê? a resposta é apenas: sou o quê. Embora às vezes grite: não quero mais ser eu!! mas eu me grudo a mim e inextricavelmente forma-se uma tessitura de vida.”
E ninguém é eu. Ninguém é você. Esta é a solidão.
pelos olhos de uma artista plástica que escreve uma carta para um destinatário desconhecido (aparentemente uma amor de seu passado), me vejo descrita de alguma forma. Clarice explora as frias e escuras partes do próprio inconsciente enquanto acessa também as minhas entranhas com sua irreverência e seu desapego em ser compreendida: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada”. nessa disposição em acessar o desconhecido, o livro é uma espécie de busca constante de algo que não se sabe, do instante que já passou enquanto escrevo isso e me vejo em outro instante, do se conhecer através do inexplicável, sendo somente esse obscuro capaz de nos representar de alguma forma: “Agora te escreverei tudo o que me vier à mente com o menor policiamento possível. E que me sinto atraída pelo desconhecido. Mas enquanto eu tiver a mim não estarei só”. nessa personagem (que já não se sabe mais se sou eu, você ou Clarice) que capta e traduz os dilemas e anseios do processo da produção artística, ela se abre, se rasga, se desfaz e se refaz através das palavras em clima de confidência, numa intimidade que lhe permite narrar o inenarrável.
Sou inquieta e áspera e desesperançada. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor. Às vezes me arranha como se fossem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e no entanto continuo inquieta é porque preciso que o Deus venha. Venha antes que seja tarde demais. Corro perigo como toda pessoa que vive. E a única coisa que me espera é exatamente o inesperado. Mas sei que terei paz antes da morte e que experimentarei um dia o delicado da vida. Perceberei - assim como se come e se vive o gosto da comida.
Uma Aprendizagem ou O Livro dos Prazeres se tornou provavelmente um dos favoritos e mais queridos de tudo que já li até então. pesquisando sobre o livro, descobri que Clarice levou apenas nove dias para escrevê-lo, sozinha num hotel, uma curiosidade que parece validar a sensação que tive de estar lendo uma confissão desesperada e urgente. na superfície, trata-se apenas do desenvolvimento romântico entre Lóri e Ulisses, dois professores bastante diferentes entre si. é a partir dessa relação, que Lóri apresenta um anseio de realização pessoal, descobrindo que para poder amar de verdade Ulisses, deve conhecer a si mesma e ao mundo — um verdadeiro desafio para a protagonista que foge do interior para escapar de uma dor que é incapaz nomear: “Que dor era? A de existir? A de pertencer a alguma coisa desconhecida? A de ter nascido?”
“De algum modo já aprendera que cada dia nunca era comum, era sempre extraordinário. E que a ela cabia sofrer o dia ou ter prazer nele. Ela queria o prazer do extraordinário que era tão simples de encontrar nas coisas comuns: não era necessário que a coisa fosse extraordinária para que nela se sentisse o extraordinário.”
Lóri conhecerá um profundo “estado de graça” pela primeira vez em sua vida, uma alegria gritante que não cabe em si: o prazer de se abrir para tudo que a vida pode lhe oferecer, inclusive a angústia inexplicável de atravessar o cotidiano que não entendemos: “E era bom. "Não entender" era tão vasto que ultrapassava qualquer entender - entender era sempre limitado. Mas não entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não entender como um simples de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucura sem ser doida”. Lóri entende apenas que essa dor de viver, a limitação de tempo e espaço que contrasta com nossas limitações interiores são o que a tornam parte desse todo que é o mundo, um mundo assustador que por vezes lhe afasta e por vezes lhe encanta. é ao se permitir sentir a dor mais profunda que poderia sentir, que Lóri sentirá um prazer inenarrável. Lóri e Ulisses se amam, conversam sobre amor, dores, sexo, solidão e as infinitas aprendizagens que o cotidiano nos insere, ultrapassando qualquer limite que os separavam, sentindo o êxtase mais puro de uma alegria genuína: “A tragédia de viver existe sim e nós a sentimos. Mas isso não impede que tenhamos uma profunda aproximação da alegria com essa mesma vida.”
“Lóri sentia que era um enorme ser humano. E que devia tomar cuidado. Ou não devia? A vida inteira tomara cuidado em não ser grande dentro de si para não ter dor.”
Lóri sente tudo com muita intensidade desde que se entende por gente, o que fez com que aprendesse a se resguardar logo cedo: “Mas existe um grande, o maior obstáculo para eu ir adiante: eu mesma. Tenho sido a maior dificuldade no meu caminho. É com enorme esforço que consigo me sobrepor a mim mesma”. a paixão chega como uma aprendizagem, num processo contínuo, sem começo ou fim, tal como a vida, é a paixão o estado mais puro de entrega de si para um outro, de extrema vulnerabilidade, realização, dor e transcendência. é preciso coragem para se estar vulnerável, uma coragem que antes de Ulisses, Lóri não havia se permitido, e ao finalmente se permitir, entra em contato com a potência de si e a potência do seu desejar e sentir, conhecendo a condição de prazer genuíno e livre. dentro disso, qual o limite entre o sentir livremente, o sentir intenso prazeroso, e o sentir que destrói? é nessa dança entre sofrer e amar, coragem e medo, dor e prazer, amparo e desamparo, que Clarice Lispector relembra a cada palavra escrita a compreensão de que viver uma vida plenamente viva é viver uma vida permeada por dores, pelo medo e o susto de descobrir- se como um ser desejante e consequentemente, um ser faltante e terrivelmente limitado: “uma das coisas que aprendi é que se deve viver apesar de. Apesar de, se deve comer. Apesar de, se deve amar. Apesar de, se deve morrer. Inclusive muitas vezes é o próprio apesar de que nos empurra para a frente. Foi o apesar de que me deu uma angústia que insatisfeita foi a criadora de minha própria vida.”
é sempre difícil essa tarefa de descrever a experiência de ler Clarice Lispector, entrando em contato com as limitações da palavra e da linguagem que ela tanto questiona em suas obras, sinto que nem de perto consegui transmitir a convocação extrema de entrega que a leitura me passou. por isso, deixo aqui mais algumas passagens que se garantem por si só:
“Não se enganava a si mesma: era possível que aqueles momentos perfeitos passassem? Deixando-a no meio de um caminho desconhecido? Mas ela poderia sempre reter nas mãos um pouco do que agora conhecia, e então seria mais fácil viver não vivendo, mal vivendo. Mesmo que nunca mais fosse sentir a grave e suave força de existir e amar, como agora, daí em diante ela já sabia pelo que esperar, esperar a vida inteira se necessário, e se necessário jamais ter de novo o que esperava. Moveu-se de súbito na cama porque foi insuportável imaginar por um instante que talvez nunca mais se repetisse a sua profunda existência na Terra. Mas, para a sua alegria inesperada, percebeu que o amaria sempre. Depois que Ulisses fora dela, ser humana parecia-lhe agora a mais acertada forma de ser um animal vivo. E através do grande amor de Ulisses, ela entendeu enfim a espécie de beleza que tinha. Era uma beleza que nada e ninguém poderia alcançar para tomar, de tão alta, grande, funda e escura que era. Como se sua imagem se refletisse trêmula num açude de águas negras e translúcidas.”
“Mas também sabia de uma coisa: quando estivesse mais pronta, passaria de si para os outros, o seu caminho era os outros. Quando pudesse sentir plenamente o outro estaria salva e pensaria: eis o meu porto de chegada. Mas antes precisava tocar em si própria, antes precisava tocar no mundo.”
Lóri estava suavemente espantada. Então isso era a felicidade. De início se sentiu vazia. Depois seus olhos ficaram úmidos: era felicidade, mas como sou mortal, como o amor pelo mundo me transcende. O amor pela vida mortal a assassinava docemente, aos poucos. E o que é que eu faço? Que faço da felicidade? Que faço dessa paz estranha e aguda, que já está começando a me doer como uma angústia, como um grande silêncio de espaços? A quem dou minha felicidade, que já está começando a me rasgar um pouco e me assusta. Não, não quero ser feliz. Prefiro a mediocridade. Ah, milhares de pessoas não têm coragem de pelo menos prolongar-se um pouco mais nessa coisa desconhecida que é sentir-se feliz e preferem a mediocridade. Ela se despediu de Ulisses quase correndo: ele era o perigo.
“Também era bom que não viesse tantas vezes quantas queria: porque ela poderia se habituar à felicidade. Sim, porque em estado de graça se era muito feliz. E habituar-se à felicidade, seria um perigo social. Ficaríamos mais egoístas, porque as pessoas felizes o eram, menos sensíveis à dor humana, não sentiríamos a necessidade de procurar ajudar os que precisavam - tudo por termos na graça a compreensão e o resumo da vida.”
“Ela se guardava. Por que e para quê? Para o que estava ela se poupando? Era um certo medo da própria capacidade, pequena ou grande, talvez por não conhecer os próprios limites. Os limites de um humano eram divinos? Eram. Mas parecia-lhe que, assim como uma mulher às vezes se guardava intocada para dar-se um dia ao amor, que ela queria morrer talvez ainda toda inteira para a eternidade tê-la toda.”
De Clarice vi apenas o filme A Hora da Estrela, e gostei, e ganhei esse livro de uma amiga, também comprei um da Darkside que Catharina falou, é lindo e agora comprei a Bela e a Fera. Aos poucos vou adentrando no universo de Clarice (minha mãe tinha esse nome). Sempre falaram que é uma leitura difícil, mas quero ler todos dela. Vi uma entrevista dela esses dias e gostei muito do jeitão dela e outra do Chico Buarque falando quando ia na casa dela e era bem novinho kkk. Muito legal essa entrevista!
Clarice bateu recentemente por aqui bem forte também. As vezes acho que demorei demais para conhece-la, mas também penso que agora foi mesmo o momento certo.
Amei o texto.
Um beijo