#4 - mês da mulher com cinema, arte, autobiografia viva e Carolina Maria de Jesus...
o 8M passou, mas é muito trabalho lindo feito por mulheres para ser exaltado e já que precisa ser repetido: estamos aqui todos os dias!
a montagem e curadoria de hoje foi deveras especial em vários sentidos, principalmente ao me lembrar que a vida não basta, mas que estar rodeada de arte feita por gente boa, é o que me mantém sã.
A METAMORFOSE DOS PASSÁROS
disponível na netflix, o filme com direção da portuguesa Catarina Vasconcelos, é uma espécie de busca pela memória em uma narração onipresente e coletiva, ilustrada por imagens contemplativas da natureza e do cotidiano. além da palavra “mãe” percorrer grande parte do longa, a diretora apresenta a finitude da vida, a pureza de nossos sentimentos e intimidade de um jeito sensível, metafórico e extremamente tocante. um inesquecível registro da nossa existência que arrepia da primeira até a última frase.
“Um dia, Jacinto perguntou a Triz o quanto gostava dele. Triz respondeu: Experimenta contar as penas dos pássaros, os grãos de areia, as estrelas no céu, as ondas do mar. Experimenta enumerar as escamas de todos os peixes, os pelos de todos os animais, as ervas dos campos que te rodeiam, as árvores e os seus frutos e conta o número incalculável de tantas outras coisas incalculáveis."Isso é impossível", disse Jacinto. Impossível? Não. Mas é muito.”
“Os mortos não sabem que estão mortos. A morte é uma questão dos vivos.”
“Embora estivéssemos em plena primavera, (…) sobre o nosso mundo abateu-se um outono igual à tristeza que sentíamos. Todo os dias o sol nascia. Todos os dias, continuava a haver uma manhã, uma tarde e uma noite. E todos os dias, os rios continuavam a atirar-se para o mar, sem medo que ele transbordasse. E para nós era tudo demasiado triste. Éramos uma natureza morta. Observávamos o mundo como se estivéssemos dentro de um quadro. E fora dele, a vida teimava em continuar.”
ARTISTAS
faz meses que me encontro rendida às artes da @cristxine. seja pelas escolhas das cores, das frases, da composição como um todo que me toca e preenche um espaço gigante dentro mim pelo seu olhar tão bonito para as relações e para o feminino.
para o mês de março (e todos os outros), a @viqueart é essencial quando pensamos em luta feminina, arte política e a pluralidade que faz parte do cotidiano de ser mulher, da arte como forma de grito, de manifesto e sentimento. sou apaixonada pelos seus traços e cores, suas ilustrações sempre tão cheias de significado.
AUTOBIOGRAFIA VIVA DE DEBORAH LEVY
em três volumes curtos, Deborah Levy mistura relato de viagem, literatura, política de gênero, maternidade, filosofia e principalmente a possibilidade de registrar memórias através da escrita. uma mistura bonita que resulta em um manifesto ao ato de escrever, ainda mais quando estamos de uma área dominada pelos caprichos masculinos. do apartheid na África do Sul à sua carreira literária, Deborah se desnuda e revela com muita honestidade a tentativa exaustiva de ser livre e desenvolver o próprio talento.
"Projetar a voz não tem a ver com falar mais alto, mas com se sentir no direito de exprimir um desejo. A gente sempre hesita quando deseja alguma coisa. (…) É uma tentativa de barrar o desejo. Mas quando você está pronta para agarrar esse desejo e colocá-lo em palavras, você pode sussurrar que a plateia inteira vai ouvir.” (COISAS QUE NÃO QUERO SABER)
"Arrancar o papel de parede do conto de fadas da Casa da Família, onde o conforto e a felicidade de homens e crianças foi a prioridade, é encontrar atrás dele uma mulher carente de gratidão, de amor, uma mulher negligenciada e exausta. Criar um lar de que todos desfrutem e que funcione bem requer habilidade, tempo, dedicação e empatia. Acima de tudo, ser arquiteta do bem-estar de todas as outras pessoas é um ato de imensa generosidade. Essa tarefa ainda é fundamentalmente percebida como trabalho da mulher. Consequentemente, palavras de todo tipo são usadas para diminuir essa gigantesca empreitada. Se foi impregnada pela sociedade, a esposa e mãe desempenha o papel de esposa e mãe de todo mundo.” (O CUSTO DE VIDA)
“Eu pensava na existência. E ao que ela se resumira. Tinha me saído bem? Quem estava julgando? Teria havido anos felizes o bastante, teria havido amor e demonstrações de amor o bastante? Será que meus próprios livros, aqueles que eu escrevera, eram bons o suficiente? Qual o sentido do que quer que fosse? Será que eu procurara os outros o suficiente? Estava realmente feliz por viver sozinha? (BENS IMOBILIÁRIOS)
109 ANOS DE CAROLINA MARIA DE JESUS
caso ainda não tenha ficado claro para quem me acompanha, Carolina figura como a maior artista que já tive oportunidade de ler e que esse Brasil teve a oportunidade de conhecer. catadora de papel, mãe de três filhos, poetista, cantora, atriz, compositora e escritora, Carolina revela toda sua lucidez e visão de mundo através de descrições intimista com o forte tom de denúncia sobre direitos básicos e a discriminação social que sofria, enquanto analisa sua condição de mãe solteira e moradora de favela. seus diários e seu trabalho como um todo, marcam a marginalização, a fome, a miséria e a violência, que são os fatos do cotidiano que alimentam a escrita de Carolina, uma forma de refúgio, uma companhia para sua liberdade insaciável, um grito de resistência, uma queixa ao mundo capitalista e industrial, um testemunho que clama por um Brasil para todos os brasileiros.