#32 - mais uma vez te convencendo a dar atenção aos contos
Êxtase, Quase Verão, Os Perigos de Fumar na Cama e Jardim das Bonecas são coletâneas que conheci nos últimos dias
gosto genuinamente da arte de contar histórias curtas, de se garantir em poucas páginas ou poucas palavras. acho lindo como muitos livros curtos, em menos de 100 páginas, são capazes de me arrebatar mais do que certos calhamaços que por vezes, passam batido. os contos surpreendem pelo espaço limitado, pelo sucesso em retratar um sentimento ou evidenciar uma situação. me recordo de histórias sublimes, imagéticas, sensoriais, que me transportaram para aquele momento curto e me deixaram com saudade, me fizeram querer mais, mas também impressionaram por se bastarem. enfim, conto é um gênero de imensas possibilidades que prova o poder da palavra e da linguagem. inclusive, há algumas edições atrás, destaquei alguns livros de contos que gostei demais de ter conhecido, daqueles que deixam gostinho de quero mais. para quem não viu, vale a pena dar uma olhada:
nas últimas semanas, tive o prazer de conhecer mais algumas coletâneas e não pude deixar de trazer aqui para tentar convencê-los novamente a dar atenção aos contos que me surpreendem a cada dia mais.
como muito bem destacou Clarice Lispector sobre Katherine Mansfield: “que coisa absolutamente extraordinária que ela é”. metáforas à sexualidade feminina ganham espaço aqui junto à essência subversiva feminina, além de conflitos de classes, vontades e desejos interrompidos, devaneios e epifanias. tudo numa simplicidade estonteante que passeia pela beleza da natureza, pela sutileza de diálogos curtos que atravessam críticas à sociedade inglesa e aos comportamentos humanos no geral. não por acaso, as personagens de Katherine Mansfield carregam significado em cada gesto, já que a própria autora ressalta em vida: “Eu intensifico as famosas pequenas coisas - então tudo passa a ser verdadeiramente significante.”, e aqui ela prova seu olhar sagaz ao simples com a exposição de momentos cotidianos aparentemente inofensivos que ganham um peso gigantesco, e que aos olhares desatentos, passariam completamente despercebidos. os questionamentos existenciais das personagens, bem como as epifanias sobre as próprias definições sociais que as constroem como seres pensantes, são o grande mérito dessa escritora elogiada não só por Clarice Lispector, mas também por Virginia Woolf e Ana Cristina Cesar, sendo essa última a responsável por traduzir Bliss (o conto mais famoso de Mansfield) para Êxtase, uma tradução que lhe custou muito tempo e sua sanidade. “Êxtase” - palavra capaz de definir a atração, a magnitude do desejo entre mulheres que extrapolam e não conseguem deixar de sentir, que precisam viver a alegria, a dor, o tempo e a euforia que é a vida na sua mais sincera bagunça e beleza. adoro como cada personagem aqui presentes é atropelada pelo inesperado, e mesmo com todo o desnorteamento, usufrui da realidade conflituosa enquanto questiona as condições sociais próprias e alheias. aproveito para emprestar um pedaço do texto de
na apresentação do livro que descreve muito bem o poder de Mansfield: “Ler Katherine Mansfield é ler sobre essa coisa chamada vida. Essa coisa que a literatura tanto explora, transforma em arte e em reflexão. É esta beleza a de seus contos: a simplicidade com que esse amontoado de sentimentos é colocado no papel, a imprevisibilidade do mundo frente aos planos. O contentamento e o descontentamento da vida.”. estes contos são um mergulho no não dito, na simplicidade refinada e complexa ao revelar tanto do corpo, da natureza e do respirar. entre festas, funerais, passeios, rotina do lar, espaço privado, observação de si e do outro, o inesperado é o que dita o caminhar de cada uma dessas histórias.“Embora Bertha Young tivesse 30 anos, ela ainda vivia momentos em que sentia vontade de correr em vez de caminhar, de dançar pequenas coreografias subindo e descendo a calçada, de girar um aro, de jogar coisas pelos ares só para pegar de volta ou de ficar imóvel e rir de nada, simplesmente de coisa nenhuma. O que fazer quando você tem 30 anos e, ao virar a esquina da sua própria rua, é tomada, repentinamente, por essa sensação de alegria - pura alegria! - como se, de repente, você tivesse engolido um pedaço brilhante do sol da tardinha e ele queimasse no seu peito, trazendo chuviscos de brilho a cada partícula, a cada dedo da mão e do pé?”
“Como a civilização é tola! Por que ter um corpo se é preciso trancá-lo numa caixa, como um violino muito, muito raro?”
“Ó, não havia lugar nenhum onde ela pudesse se esconder e se guardar para si mesma pelo tempo que quisesse, sem incomodar ninguém e sem se preocupar com ninguém? Não havia lugar nenhum no mundo onde ela pudesse, finalmente, colocar para fora o seu pranto?”
“As pessoas andavam rápido, apressadamente; os homens caminhavam como tesouras, as mulheres desfilavam como gatos. E ninguém tinha ideia. Ninguém se importava. Mesmo que ela caísse no choro, se finalmente, depois de todos esses anos, ela chorasse, se veria ignorada, como se nada estivesse acontecendo.”
há poucas semanas atrás, tive o imenso prazer de comparecer no lançamento dessa belezura que é Quase Verão, o livro de estréia do talentosíssimo Renan Marinho Sukevicius. encantada pelo projeto gráfico, a edição se tornou ainda mais especial quando assinada pelo próprio autor com “estamos todos por um triz” após trocarmos um abraço caloroso. a frase que me instigou ainda mais para passar o livro na frente de outras prioridades, parece definir muito bem o olhar de Renan para os aspectos da vida, para as imprevisibilidades que nos rodeiam e os grandes sentimentos que acompanham a difícil transição para a vida adulta, cheia de desafios mas também de primeiras vezes, de frios na barriga, de descobertas que lembram o sentido de caminhar por essa vida maluca, aterrorizante e imensamente bonita. se em Êxtase, de Katherine Mansfield percebemos o cotidiano inglês, em Quase Verão, Renan escancara com muita habilidade e verdade o cotidiano brasileiro: as periferias, as ruas, os lares e os personagens em suas mais variadas idades e vivências. é gostoso e aterrorizante demais abrir um livro nacional e sentir genuinamente o Brasil naquelas páginas, sentir o transporte, a violência, as brincadeiras na rua, as intimidades, as gírias, os palavrões, os toques, a fome, a pobreza, o descaso, a natureza e vários outros elementos particulares que assombram e encantam diariamente cada um de nós. nas dezesseis narrativas curtas e suficientes para tirar um fôlego, um sorriso ou um aperto no peito, Renan Marinho Sukevicius constrói personagens que olham para o passado e refletem sobre momentos que mudaram suas vidas ou momentos que antecedem tal mudança brusca, seja a definição de uma relação ou o encontro com o ordinário que se torna extraordinário. passeando por questões como masculinidade, paixão, reencontro, racismo, política, medo, vulnerabilidade, religião, sexualidade e relações familiares, Quase Verão é de fato um livro que exala verão, calor, suor e Brasil, mas que também casa lindamente com qualquer estação do ano já que vivemos nesse caos climático onde inverno é verão e vice-versa. entre amadurecimentos, perdas e ganhos, foi um prazer conhecer o olhar atencioso e generoso de Renan para o nosso cotidiano.
“Aproveitou o tempo do xixi pra repassar a rotina na cabeça. Tinha que lavar as roupas. Os galões de água estavam cheios, mas o sabão em pó tinha acabado. Pensou em usar o sabão de coco em barra. Precisava correr com o almoço pra dar tempo de lavar a roupa, era verão, a chuva viria logo cedo, como tinha acontecido nos outros dias.”
“Uma tarde perguntei se Vô Antonio um dia já quis pular lá de cima. Sim, respondeu sem nem pensar. Por quê?, repliquei, também veloz. Porque ás vezes a gente se angustia. Foi a única vez que ouvi algo tão frágil daquele homem tão rude. As mãos de Vô Antonio eram ásperas, cheias de calos. Seu rosto era tão cheio de pregas que parecia uma árvore centenária. as unhas de seus pés erma cascos pré-históricos.”
“As contas dela começavam no início do dia: a que horas Isaías poderia acordar a ponto de não dormir demais, mas também de não ficar por muito tempo acordado, porque quanto mais tempo acordado, mais comeria. Era quase um problema matemático: há cinco pães no pacote, se Isaías ficar acordado por 18 horas, quantos pães comerá?, pensava, como se a aritmética desse conta da fome de uma criança em fase de crescimento.”
muito conhecida pela coletânea As Coisas que Perdemos no Fogo, Mariana Enriquez ganha espaço com mais uma joia no Brasil: Os Perigos de Fumar na Cama (sendo seu primeiro volume de contos). ambos os livros marcam o leitor ao revelar medos, fraquezas e desejos mais obscuros. além do incômodo pungente já conhecido da autora, gosto da forma que ela se utiliza do terror para oferecer um olhar aguçado e atento para as violências e injustiças cotidianas que sustentam a sociedade que construímos. ditadura argentina, erotismo obscuro, sexualidade, hipocrisia, vidas marginalizadas, realidades domésticas distorcidas, inveja, racismo e infinitos outros elementos são parte das breves histórias aqui reunidas que fisgam, chocam e reforçam o talento de Mariana Enriquez em expor as mazelas sociais e as mazelas que estão também dentro de cada um de nós. entre o fantástico, o sobrenatural e o real, é sempre ótimo deparar-se com a audácia de Mariana Enriquez, seja pelas figuras tomadas por sentimentos profundamente humanos (o ciúme, o ódio, o orgulho, o desejo, a raiva, o medo, a obsessão e a estranheza), ou simplesmente pela escrita que enlaça numa atmosfera que não perde nada para aqueles filmes de terror dos mais fantasiosos cheios de sustos e monstros. afinal, fantasmas são presentes em grande parte dos contos, carregando consigo a memória de uma sombra ainda maior, comunicando-se com os vivos ou servindo de ponte para revelações muito mais aterrorizantes que o próprio fantasma. a capacidade de partir do real para criar algo fantástico e chocante sem perder aquilo que se conecta e investiga a realidade, é o que impressiona na mente criativa de Mariana Enriquez. o gosto da inquietação, da falta de controle e sentido fica com a gente mesmo após o encerramento de cada história.
“E ele preferia ela? Por quê? Porque trepava com ela? Mas nós também queríamos trepar, não queríamos outra coisa! Ou por acaso ele não percebia quando sentávamos no seu colo apoiando a bunda com bastante força e tentando apalpar o seu pau com a mão, como que por descuido? Ou quando ríamos perto de sua boca, mostrando-lhe a língua? Por que não nos jogávamos em cima dele e pronto? Porque acontecia com todas nós, não era apenas a obsessão de Natalia: queríamos ser escolhidas por Diego. Queríamos estar com ele ainda molhadas de água fria da pedreira, trepando com uma depois da outra, ele deitado na prainha, esperando os tiros do proprietário, e correr até a estrada seminuas sob uma chuva de balas.”
“Eu podia passar horas sobre seu peito e então, emocionada, o beijava e abraçava quase violentamente, e seu riso e sua entrega me preocupavam bastante porque, ás vezes e com mais frequência à medida que o tempo passava e nossa intimidade crescia, eu tinha certeza de que se o escutasse por mais um segundo eu mesma iria destruí-lo. Golpeá-lo, abri-lo com as unhas, mais marcas, uma maneira de estar mais perto, torná-lo mais meu. Precisava conter esse desejo, essa vontade de me saciar, de abri-lo, de brincar com seus órgãos como troféus escondidos.”
já tive algumas experiências anteriores com Joyce Carol Oates, e como era de se esperar, o insólito é o grande protagonista de situações incompreensíveis, de traumas reprimidos e tudo que caracteriza um bom terror psicológico. iniciando com a história de um jovem que coleciona bonecas, os contos se estendem para uma esposa “paranóica” com a possibilidade de ser assassinada pelo marido; um assassino que nutre a certeza de ser um herói; uma garota solitária que conhece um novo amigo com um aterrorizante segredo e outras histórias de crime, crueldade, paranóias, obsessões, violências e tudo de mais podre que habita no coração humano e nas profundezas que evitamos acessar por muitos motivos. os contos não surpreendem em acontecimentos inesperados ou reviravoltas mirabolantes, na verdade, quase todos são previsíveis, e mesmo assim, provocam o frio na barriga por representar tanto da mente humana e sua capacidade de fazer o mal, por ultrapassar a ficção e nos fazer questionar até que ponto esses escritos são imaginação da autora ou simplesmente a vida real. pessoas desajustadas socialmente ganham espaço em narrativas que desafiam o conceito que conhecemos sobre família, confiança e relacionamentos em situações que vão do desespero ao tédio. para quem conhece Oates, sabe da sua capacidade em trazer à tona temáticas sociais contemporâneas: racismo, desigualdade social, machismo e opressões estão presentes em peso por aqui em forma de terror, mas que podem tranquilamente representar uma situação cotidiana que todos nós já nos deparamos em algum momento. o insólito que rodeia esses comportamentos irracionais, não mede esforços para saciar o sombrio profundo e assusta justamente pela verdade que carrega. Jardim das Bonecas é uma grata surpresa em contos longos e bem construídos que referência as muitas possibilidades narrativas.
“Durante toda a vida, a gente quer voltar ao que já foi. Deseja o retorno daqueles que perdeu. Faz coisas terríveis para voltar, coisas que ninguém mais pode entender.”
“Ele era um homem muito carismático, o marido. Ela se apaixonara uma hora depois de conhecê-lo - o que pareceu romântico na época, mas nem tanto agora.”
“O marido a amparava como se fosse uma criança preciosa e, ao mesmo tempo, expressava sua impaciência com ela. Os dedos que seguravam com força com força seu braço transmitiam uma fúria contida, que poderia empurrá-la indefesa e gritando escada abaixo, se ele quisesse, porque o marido era surpreendentemente forte.”
Oi, Catarina! Gostei principalmente da segunda resenha, do livro "Os perigos de fumar na cama". Sua newsletter me foi sugerida do nada, a partir da leitura do algoritmo. Essa é só a segunda que leio e a linguagem de desejo da segunda resenha me fez se identificar. Desejo puro(que eu ando sentindo por uma mulher) colocado em palavras.