#29 - cartas de Van Gogh, Ana Cristina Cesar e Rainer Rilke
minha declaração de amor pelo ato de escrever cartas através de Cartas a Théo, Amor Mais que Maiúsculo e Cartas a um Jovem Poeta
este tem sido um ano de reconexão com uma forma de afeto e expressão que sempre me encantou, que reconheço como parte da minha personalidade: as cartas. ainda que ficção predomine entre minhas leituras, existe uma enorme parte de mim que é apaixonada, alucinada e obcecada por cartas. nestes últimos meses, tive a sorte de receber ou encontrar preciosidades em forma de cartas, e depois de começar a ler uma das coletâneas, não parei mais e precisei compartilhar parte das grandiosidades presentes nestes escritos. foi uma experiência de relembrar a criança/adolescente tão conectada ao papel, que escrevia carta para as pessoas na mesma medida que incentivava que escrevessem para mim, sendo o maior presente e maior prova de afeto que eu poderia receber. não por acaso, colecionava papéis de cartas que estão até hoje comigo, sempre possibilitada pela minha tia que me passava sua enorme coleção aos pouquinhos. ansiava por aqueles momentos em que sentávamos na cama, ela abria as pastas grossas cheias de relíquias da própria infância nos anos 80/90, e me passava cuidadosamente alguns dos papéis, tornando-se inclusive um momento íntimo nosso. montei minha coleção ao longo dos anos e talvez tenha sido destes papéis que surgiram minha paixão pela escrita no geral, pelas infinitas possibilidades que um papel em branco carrega e as grandes manifestações artísticas que podem nascer dali.
cartas além de serem registros históricos, são grandes receptáculos em que encontramos as mais íntimas relações, os mais profundos sentimentos e os mais honestos desejos. nada mais bonito e mais brega que uma carta de amor, afinal. no caso das indicações abaixo, temos grandes personalidades que ao registrar tanto de sua vida para o destinatário, permite-nos conhecer um momento histórico, uma grande paixão, um sofrimento, uma inspiração, uma angústia e tantos aspectos das personalidades que contribuíram para a literatura e para a arte. são centenas de cartas que emocionam, que arrepiam e provam a beleza extrema de escrever sobre si para outra pessoa.
Cartas a Théo, de Van Gogh
Vincent Van Gogh me acompanhou nos últimos seis meses. tive longas pausas entre uma carta e outra até me acostumar com seus humores alterados de um período depressivo a um período eufórico e otimista. aliás, sua tentativa em se manter otimista diante a própria arte é gigantesca e que chamou muito a minha atenção, otimismo que se transforma em angústia e dor pela falta completa de dinheiro para o próprio sustento, pelo transtorno psicológico desconhecido, pelo fracasso nas vendas de seus quadros, contando apenas com a boa vontade do irmão em sustentá-lo, sendo Théo também um homem pobre. o olhar atento para a natureza à sua volta parecia quase hipnotizar Vincent, bem como os camponeses, os operários e outras vidas miseráveis como a sua que estão constantemente presente nas obras que pintava, dominadas pela melancolia do artista em sua necessidade de aceitação, de reconhecimento pelos próprios feitos que não chegaram em vida. as cartas servem quase como uma autobiografia, pois aqui o artista registra os processos criativos dos quadros que hoje são conhecidos mundialmente, bem como o processo e admiração por outros artistas e pelo mundo no geral, seus rompantes, crises e dificuldades. Van Gogh apesar de conhecido pela personalidade difícil, é um grande apreciador do amor e o poder do amor de transformar vidas; em muitas das cartas direcionadas ao irmão, seu olhar atento para os sentimentos e para a humanidade são lindamente descritos e revelam a grandiosidade de sentimentos bonitos dentro deste homem. não só o amor, mas principalmente a arte que possui um poder absurdo sobre ele, sendo de fato o que o mantém vivo, numa entrega completamente legítima: “Quanta beleza na arte, desde que possamos reter o que vimos. Jamais ficamos então deserdados, nem verdadeiramente solitários, jamais sós”. a dedicação para a pintura era tanta, que deixava de comer e dormir para comprar materiais, resultando na piora de sua saúde já bem delicada. apesar de não termos acesso as cartas escritas por Theo, é possível visualizar sua cumplicidade, Theo foi a figura essencial para que Vincent pudesse se dedicar à pintura, acreditando no talento do irmão, dando-lhe suporte financeiro e afetivo, talvez a pessoa mais importante em sua vida. o amor e dedicação do irmão mais novo foi sempre reconhecido por Vincent, que muitas vezes lamentava dar tanto trabalho ao irmão, se enxergando como um estorvo, um nada, mas com esperança de um dia retribuir toda a gentileza e suporte do irmão, enviando-lhe esboços de quadros e pequenos presentes que demonstravam sua gratidão. há ainda longos discursos acerca dos artistas da época, teoria das cores, pinceladas e outros elementos que tornam a leitura enfadonha, lenta, mas que por isso mesmo, palpável e real; estamos imersos na cabeça e no cotidiano desta figura atormentada por si mesmo, pela angustia incapacitante, pela constante busca de paz até a decadência de qualquer esperança, assolado pela pobreza e pela solidão. uma experiência absurdamente sensível, dolorosa e muito bonita que perdurou por meses na minha mesa de cabeceira, gerando conexão gigantesca com a visão deste artista acerca da difícil existência e o alto preço da genialidade.
“A partir do momento em que nos esforcemos em viver sinceramente, tudo irá bem, mesmo que tenhamos inevitavelmente que passar por aflições sinceras e verdadeiras desilusões; cometeremos provavelmente também pesados erros e cumpriremos más ações, mas é verdade que é preferível ter o espírito ardente, por mais que tenhamos que cometer mais erros, do que ser mesquinho e demasiado prudente. É bom amar tanto quanto possamos, pois nisso consiste a verdadeira força, e aquele que ama muito realiza grandes coisas e é capaz, e o que se faz por amor está bem feito.”
“É verdade que ora ganhei meu pedaço de pão, ora ele me foi dado por bondade de um amigo; vivi como pude, nem bem nem mal, como dava; é verdade que perdi a confiança de muitos; é verdade que minha situação pecuniária está num triste estado; é verdade que o futuro me é bem sombrio, é verdade que eu poderia ter feito melhor; é verdade que só para ganhar meu pão eu perdi tempo; é verdade que meus próprios estudos estão num estado lamentável e desesperador, e que me falta mais, infinitamente mais do que o que tenho. Mas vocês chamam isso de cair, de não fazer nada?”
“Seja na figura, seja na paisagem, eu gostaria de exprimir não algo sentimentalmente melancólico, mas uma profunda dor. Em suma, quero chegar ao ponto em que digam de minha obra: este homem sente profundamente, e este homem sente delicadamente. Apesar da minha suposta grosseria, você me entende? Ou precisamente por causa dela. O que é que sou aos olhos da maioria - uma nulidade ou um homem excêntrico ou desagradável -, alguém que não tem uma situação na sociedade ou que não a terá; enfim, pouco menos que nada. Bom, suponha que seja exatamente assim, então eu gostaria de mostrar por minha obra o que existe no coração de tal excêntrico, de tal nulidade.”
Cartas a um Jovem Poeta, de Rainer Maria Rilke & Franz Xaver Kappus
publicado pela primeira vez em 1929, a troca de cartas entre Kappus e Rilke acontecem entre 1903 a 1908. Kappus é o tal jovem poeta que se encontra na dúvida entre a carreira militar e a literária, enquanto Rilke é o escritor tcheco amplamente reconhecido como um dos poetas de língua alemã mais liricamente intensos. entre essas cartas, Rilke conduz seu interlocutor pelo caminho do amadurecimento, desnudando toda a paixão pelo ofício literário que exige entrega e dedicação, exige acima de tudo, verdade. pode-se encarar as cartas de Rilke como longos ensaios acerca do ofício da escrita, mas não qualquer escrita, aquela que você morreria se não colocasse no papel, que revela seus devaneios íntimos, principalmente a tão temida solidão, que possui uma função indispensável para a arte e para o conhecimento de si próprio e todas as possibilidades de sentimentos, sem deixar passar ou afastar nenhum, até mesmo os mais dolorosos, e só assim, como bem destaca ele, viverá de uma forma mais transparente e livre. é muito bonita e contagiante a forma que Rilke coloca a perspectiva do fazer poético dentro da própria realidade, abrindo mão de técnicas e críticas, bastando-se apenas da educação do olhar sensível e atenção adquiridas com o tempo, com a entrega a tudo que nosso próprio corpo e nossa própria mente pode oferecer: “Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever, comprove se ele se estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever”. em contrapartida, acompanhamos também o ponto de vista de Kappus, que é tão instigante e precioso quanto o de Rilke, já que o garoto encara essa relação de forma íntima a ponto de revelar sua tristeza, sua paixão, seu sentimento de incapacidade, bem como o medo da solidão que o assola, a angústia de não saber o caminho certo, e ainda as centenas de inquietações acerca de Deus, do amor e da figura da mulher. enfim, são cartas que me arrepiaram, que me encheram os olhos de água, me fizeram suspirar, ler, reler e querer muito mais. um deleite indispensável para quem ama reflexões sobre escrita, solidão e humanidade.
“Por isso, fuja dos temas gerais, refugie-se naqueles que seu cotidiano lhe oferece, descreva suas tristezas e seus anseios, os pensamentos fugidios e a fé em uma beleza qualquer - descreva isso tudo com sinceridade íntima, silenciosa e humilde e utilize as coisas ao seu redor para se expressar, as imagens presentes em seus sonhos e os objetos de sua memória. Caso seu cotidiano lhe pareça pobre, não o acuse, acuse a si mesmo, diga a si mesmo que não é poeta o suficiente para evocaras suas riquezas; pois para o criador não há pobreza nem lugar pobre irrelevante.”
“(…) há apenas uma solidão, e essa é grande e não é fácil de carregar, e para quase todos vêm as horas em que gostariam de trocá-las por qualquer coletividade, por mais banal e barata que seja, pela aparência de uma ínfima coincidência com o primeiro que aparecer, com o mais indigno… Mas talvez sejam justamente essas as horas em que a solidão cresce, pois seu crescimento é doloroso como o crescimento dos meninos e triste como o inicio das primaveras. Mas isso não deve confundi-lo. Necessário é apenas isto: solidão, grande solidão interior. Mergulhar em si e não encontrar ninguém durante horas, é isso que se precisa alcançar. Estar só, tal como se era quando criança, quando os adultos circulavam enredados em coisas que pareciam importantes e grandes, porque os grandes pareciam tão atarefados e porque não se entendia nada dos seus afazeres.”
“Mas o que mais me assola é o fato de eu pensar em uma mulher que foi e talvez ainda hoje seja tudo para mim. Esse amor me martiriza dia e noite, me ataca pelas costas e me chicoteia de uma inquietação para a outra. Não consigo me livrar dele, por mais força que eu use. Ele me assombra em meus sonhos e me sufoca como uma roupa muito apertada. À noite, ele sobe pelas minhas têmporas e tinge todas as coisas de um vermelho sangue.”
Amor Mais que Maiúsculo (cartas a Luiz Augusto), de Ana Cristina Cesar
dentre tantos registros grandiosos que encontramos nessa reunião de cartas, sem dúvidas o que mais emociona e arrepia, é a urgência de Ana Cristina Cesar, em seu auge da juventude (aos 17 anos), apaixonada e quase convulsionando de saudade de seu namorado na época, o Luiz Augusto: “LUIZ, eu nunca pensei que tua ausência me despertasse tantos gostos tristes na boca e que eu fosse uma parte tão sua.” entre trivialidades do cotidiano e centenas de referências artísticas (música, cinema, literatura, teatro), o poder do amor que Ana sente é o que predomina nas cartas em meio ao mundo turbulento, longe de casa no intercâmbio pela Inglaterra durante o período da ditadura militar brasileira, sendo Luiz Augusto a única parte de sua vida que parecia fazer algum sentido: “Te amar foi dar um sentido à falta de sentido.” não sou grande adepta à poesia, mas vez ou outra me permito conhecer escritos de grandes poetas, dessa vez sendo um dos principais nomes da Geração Marginal dos anos 70. em muitos momentos a loucura é citada por Ana Cristina, que enfrenta dificuldades para colocar em palavras todo o turbilhão da sua cabeça, resultando em frases desconexas, aleatórias, que passeiam pelo fluxo de pensamento e urgência da jovem em transcrever a angústia que vai além do amor e da saudade, está no seu viver, no seu andar e também na profunda solidão frente a tantos corpos diante de si, mas que nenhum parece de fato compreende-lá: “Eu te amo todo, toda. Me sinto anormal e manca nestes dias enormes”. essas cartas guardadas por quase cinquenta anos pelo próprio Luiz Augusto, revelam a grande poeta que Ana viria se tornar com seu olhar crítico de apenas dezessete anos imersa pelo turbilhão da juventude e pela efervescência que transmitem toda a ousadia da autora nas experimentações da escrita, seja misturando idiomas, brincando com a pontuações e os sentidos das palavras, fazendo poesia em forma de desenhos e em papéis aleatórios que encontrava pelo caminho. são registros que evidenciam honestamente e muito vividamente o estilo e visão de mundo da autora, tornando uma experiência sensorial e emocionante ao ter acesso à sentimentos íntimos da paixão e do querer, às noites de insônia e àquela sensação dominante e quase mortal de precisar do outro. Ana Cristina Cesar se desnuda, se entrega à escrita e à saudade. as longas declarações que tomam conta das páginas me prenderam de tal maneira que meu desejo foi tatuar parte das frases enquanto admirava a capacidade desta mulher em encontrar as expressões exatas, bem como reconhecer a limitação da linguagem, a falta de palavras que definam uma sensação ou o poder que uma pessoa pode ter sobre nós. sinto que meu ano foi mais especial e intenso após me permitir conhecer Ana Cristina.
“Luiz, eu estou ficando louca. Não a loucura passageira dos amantes das grandes cidades, não a loucura inútil dos ouvintes de violinos, não a loucura em prantos dos mais ou menos desesperados. Eu estou ficando louca por não entender a sobrevivência destes corações. Eu estou ficando por não conseguir compreender essa minha vida entorpecida, vida sem a tua.”
“estive pensando pensando na viagem - cheguei em casa liguei o rádio, abri o atlas, fiz planos, vi o calendário, comecei os cálculos - parei. Parei. me deu uma secura - uma vontade de morrer, não, uma invontade de continuar agitando os braços - não sei se é falta de um motivo qualquer (estou vivendo, pra quê?), a falta de gente que nos ama, uma depressão de pressão, a saudade de você, a confusão inteira, o frio, as pulsações irregulares, não sei, esta falta de motivo, não vou mais pensar em escrever até voltar o ânimo de ao menos cantarolar uma música sozinha, por nada. Agora não se pode mais.”
“Eu ontem tive a impressão exata de que nós somos condenados a ser, tive pela primeira vez a sensação definida, não era nada pressentido, nada intelectualizado, nada racionalizado, era a mensagem de um momento - condenada a ser.”
“Estou cansada de mim, estou cansada de mim sem você, eu sem você sou monótona, estou cansada. As tuas cartas não bastam para minha Saudade, eu precisava ter você e eu tenho medo (…).”