#28 - a ausência do meu pai + outros olhares para a figura paterna e o luto
As Pequenas Chances, O Que É Meu e O Garoto do Meu Pai são os livros que se conversam na edição de hoje
tenho falado bastante acerca do lugar de ser filho, de nascer ou não nascer… e por destino ou acaso, cada vez leio mais sobre, descubro novas narrativas que se complementam. dessa vez, houve uma similaridade bem específica entre as últimas leituras: a figura paterna e o luto. os livros destacados aqui hoje são compostos por olhares de filhas e filho que registram momentos de vida de seus pais, principalmente da perda (ou quase perda) desta figura emblemática na vida de qualquer um (seja para o bem ou para o mal, seja pela presença ou pela ausência), e coincidentemente, sendo todos numa dura luta contra o câncer. as narrativas optam por uma relação pessoal que se mistura o social, o cotidiano e a história da própria genética, da própria composição familiar.
talvez por ter vivenciado uma relação tão incomum com meu próprio pai, que esteve ausente na maior parte da minha vida antes de falecer, o tema seja acolhedor e doloroso ao mesmo tempo. não era aquela típica ausência que já conhecemos pelo famoso "foi comprar cigarro” ou simplesmente deixar de pagar pensão. se tratava de um afastamento quase compulsório, fugindo do controle dele estar ou não estar comigo e meu irmão… resultados das circunstâncias de uma vida marcada pelas drogas e álcool, pela miséria extrema que o afogou completamente numa situação de solidão, apagamento e vulnerabilidade social num momento em que eu como adolescente não possuía muitas ferramentas ou recursos para ajudá-lo (bem como minha família, já imersa na própria vulnerabilidade social) ou compreender o que estava acontecendo, e ainda assim, mesmo que com a dor da ausência, do não lugar, da violência que ele praticou contra outras pessoas, do não saber exatamente o que acontecia com o meu pai e o que eu deveria sentir por aquela figura e se um dia teríamos a oportunidade de estar juntos novamente, apesar de tudo isso, ele foi capaz de me deixar marcas bonitas em pouco tempo de convivência, de provar o seu amor da forma que podia (sendo um dos mais genuínos que senti, ainda que breve e bagunçado), de provocar saudade mesmo com a imagem negativa que a maioria das pessoas nutriam sobre sua figura marrenta, dura e emburrada, que mantinha os olhos e cabeça abaixada nas fotos por não conseguir expressar um sorriso ou qualquer expressão confortável.
naturalmente, a morte dele não me proporcionou um luto comum. na verdade, foi tudo muito ambíguo, tão confuso e que me nutriu o sentimento mais indescritível que já vivenciei (após quatro anos ainda me recordo do funeral de apenas cinco pessoas velando seu corpo, sendo o mais próximo que cheguei de sentir a solidão de outro corpo, o corpo sem vida, sem legado, laços ou realizações. um corpo machucado que transmita a carência de afeto, a violência da rua e das drogas), que nem mesmo a literatura, aquela que me apego e me consolo, foi capaz de traduzir, e acredito que nada seja. aliás, os livros que destacarei abaixo têm pouco ou nada em comum com o que meu pai viveu ou eu vivi. e por isso mesmo estão aqui, por me remeterem aos momentos que me faltaram, momentos que ansiava ao prestar atenção na constituição de família dos colegas e amigos ao redor, afetos e intimidades que gostaria de ter experimentado com o meu pai, que esperei acontecer boa parte da infância e adolescência, bem como o desejo de um luto concreto, comum, um luto em que eu pudesse compreender a dimensão de perder um ser presente, íntegro e parte da minha rotina de menina. ainda que brutais e tristes, as narrativas são memória bonitas de pais e filhos que tiveram a oportunidade de estarem juntos, de brigarem, sorrirem, vivenciarem um cotidiano por vezes bom e por vezes hostil, são narrativas que irrompem tudo aquilo que não me foi permitido, o luto negado e a palavra “pai” que poucas vezes minha boca pronunciou.
AS PEQUENAS CHANCES, de Natalia Timerman
Natalia parece ter grande intimidade com o tema da despedida, já que em Copo Vazio acompanhamos a dor de lidar com o desaparecimento da pessoa amada, o abandono sem rastros. já em seu recém lançamento, a autora evoca o período de doença e a morte que se infiltra no próprio cotidiano e no de toda sua família, aquela despedida longa que não deixa também de ser um abandono, o luto antecipado que reforça a consciência do fim. seja uma última conversa, viagem, gargalhada, momento de lazer ou trabalho e todas as particularidades que tornam aquele pai uma figura indispensável, que com sua ausência anunciada, transforma a forma de perceber e se sentir no mundo da protagonista. entre luto e memória, o romance autobiográfico acarreta numa tentativa de buscar si mesma. em uma das três partes, acompanhamos a protagonista numa jornada com destino para a Ucrânia, na tentativa de buscar algo que a conecte com seus antepassados, com o próprio pai, com os costumes judaicos ignorados por ela até então, e que a surpreende ao proporcionar a sensação de acolhimento, pertencimento e aproximação daquele que se foi. é possível sentir os sentimentos, a dor e a agonia de Natalia pela perda da conexão e da identidade em cada página.
“Meu pai havia morrido, e cada coisa continuava no lugar. Na rua, na praça cheia de árvores na frente de casa, onde os meninos brincam, tudo permanecia do mesmo jeito, se movimentando, as árvores, os pássaros, os barulhos, os carros no asfalto, tudo igual, mas havia um silêncio por trás das coisas. A morte é um silêncio, atrás de cada som há esse silêncio, o telefone que nunca mais vai tocar, sua voz calada, nunca mais a singela mensagem Na/Posso ligar?, e eu nunca mais vou poder ligar direto em vez de responder que sim, pode, pai, porque você não pode mais ligar, eu não posso mais falar com você, e no entanto, tudo como se continuasse.”
“Não fazia sentido algum continuar guardando os melhores vinhos. Até quando? Até que o próximo de nós morresse e percebêssemos de novo a falta de sentido de tudo, de guardar os melhores vinhos para ocasiões especiais, do tempo, das coisas? As coisas do meu pai continuavam ali, inúteis. Os remédios dele no banheiro. A escova de dentes, disposta por ele exatamente ali antes de ir para o hospital. Os próprios livros. A dolorosa inutilidade dos objetos. As coisas dele, tristes e silenciosas; e por extensão, as minhas. Toda a tralha existencial revelando sua inutilidade, sua rídicula impermanência.”
O QUE É MEU, de José Bortoluci
José Bortoluci teme que, com a possível partida do pai, também se acabaria a possibilidade de novas histórias contadas por ele. numa herança linguística, passearemos por ricos registros que só eles puderam narrar. muito já se disse sobre O Que É Meu, e no momento, meu desejo é que este livro chegue cada vez mais em longe, ocupe lugares distintos, pois há tanto de José Henrique Bortoluci que eu gostaria que mais pessoas nutrissem dentro de si, principalmente a observação, o olhar atento. difícil me acostumar com a beleza da coincidência em ler obras que se conectam de alguma forma, obras que te levam para outras obras. vocês já devem ter percebido o quanto amo mergulhar sobre um mesmo tema/assuntos a partir de diferentes narrativas, e seria impossível não comparar O Que É Meu com O Lugar (Annie Ernaux) ou Saia da Frente do Meu Sol (Felipe Charbel) e em certa medida, até as obras de Édouard Louis que li recentemente. são narrativas que apesar de falarem de si, saem da posição de protagonismo para narrar a vida do outro, e no caso de Bortoluci, a vida de um homem pertencente a classe trabalhadora, um homem comum que não costuma estar em destaque nos livros e pesquisas, que representa tantos outros caminhoneiros, operários que quase não possuem acesso a o mundo que construíram. ao mergulhar na sociedade brasileira da década 60/70 até os dias atuais, percebemos o contexto político que impacta diretamente na rotina de pessoas que não paramos para olhar duas vezes, que apesar de serem os mais prejudicados pela política, são os que menos participam do debate e das decisões, afinal, como afirma o pai do narrador em determinado momento: não importa que candidato vença nas eleições “já que no outro dia a gente vai ter que trabalhar do mesmo jeito”. além da vivência como caminhoneiro, Bortoluci registra também a luta do pai contra o câncer, a dor inenarrável de observar a degradação de um corpo e de uma mente que fez parte da construção do nosso país, que é pai e é marido, um luto que não se concretiza, pois Seu Didi (o pai) segue contando as histórias para o filho. entre conversas que o autor registra, temos a percepção e falas do próprio pai acerca das memórias de estrada como caminhoneiro, das amizades, dos sufocos, da saudade constante de casa, dos perrengues infinitos e também do orgulho de si mesmo como caminhoneiro que ao longo de cinquenta anos, cruza estradas do norte ao sul, sendo parte do nascimento de muitas dessas estradas e cidades. junto a tudo isso, ainda se destaca a análise dos lugares sociais ocupados pelo pai e por ele. o filho que para obter êxito nos estudos e no campo profissional, tinha um pai e uma mãe batalhando para segurar as pontas, assombrados pela pobreza. o sentimento de ruptura com uma classe social é muito bem descrito por Bortoluci, sendo uma experiência que grande parte de nós se identifica. um relato que emociona e que ecoa por dias, que faz a gente querer voltar não só para as páginas do livro, mas também para as páginas da nossa própria vida, da história dos nossos que se sujeitam à precariedade para que possamos assumir outro lugar.
“Como se narra a vida de um homem comum? Sou desafiado pelo silêncio das fontes, o apagamento de registros daqueles que constroem o mundo, que escrevem suas histórias com mãos e pés, com palavras ditas e cantadas, com suor e a pele marcada. Tento entrar naquele território do ir e vir dos que não costumavam fotografar, que não escreveram muitos diários, não deram entrevistas nem foram filmados. (…) Isso seria tarefa de um biógrafo, mas biógrafos não se debruçam sobre a vida de pessoas como ele, trabalhador, homem comum, que pouco leu e escreveu, que não liderou corporações, não comandou exércitos, não governou países ou conquistou territórios.”
“No dia em que sua mãe morreu, em 2008, quando estávamos por um momento apenas nós dois ao lado do corpo dela, ouvi meu pai lamentar baixo: ela tá indo embora sem deixar nada. Suponho que ele ali não falava como filho que lastimava por não receber parte de uma herança material qualquer, mas como um pai receoso de também “não deixar nada”, de um dia terminar como mais uma engrenagem de um ciclo de reprodução da classe trabalhadora em um país em que a desigualdade é uma das marcas distintivas, nosso cruel amálgama coletivo. Naquele momento, não era só com a sua mãe morta que ele falava, mas comigo e meu irmão, com nossos eus do futuro frente ao corpo inerte de um pai que, provavelmente, seria um dia velado por nós. Aquelas duas máximas - e agora você sabe a sua história; ir embora sem deixar nada - erma sua forma de narrar o fracasso de um projeto de ascensão social que conectava dois continentes e quatro gerações de sua família.”
O GAROTO DO MEU PAI, de Emmanuelle Lambert
um tanto desafiador escrever sobre um livro que é tantas coisas, e neste caso, que se propõe narrar os últimos cinco dias de um pai na luta contra o câncer de pâncreas, extendendo-se para uma rica observação do entorno, das consequências, fugindo de qualquer simplismo ou clichê, quase um livro que te desafia, que não é óbvio mesmo que luto seja um tema aparentemente “manjado”. é bonito como Emmanuelle Lambert acerta na dose de sentimentalismo ao compartilhar memórias íntimas da infância que se tornam coletivas quando conhecemos mais do pai, da irmã ou dela mesma, e o quanto essas memórias são palpáveis, cotidianas, simples e justamente por isso, tão inesquecíveis e formadoras da própria Emmanuelle. fui surpreendida mais ainda quando a autora dedica espaço para a performance social da mãe, que ousou frustrar certas expectativas, desafiando obrigações sociais e contestando os pesos intrínsecos às mulheres desde o momento em que nascem. quase que como um retalho, há ainda lindos trechos acerca da relação com a literatura na infância que conectava a autora de forma única ao pai, páginas tocantes sobre a preferência conservadora e também curiosa para a literatura no geral, que se difere e se aproxima da nossa em algum nível. relatos que se debruçam sobre a literatura, são sempre um deleite, e aqui não foi diferente. dentre todos os temas e vivências que a autora se propõe explorar, o que se destaca na publicação, são as descrições atentas da personalidade desta figura paterna de extrema importância que representa a primeira perda e também os agravantes do câncer que o atravessam física e emocionalmente. não há maniqueísmo, aqui conhecemos os afetos e conquistas bonitas deste pai, sem omitir as falhas que são parte da relação conflituosa e intensa. utilizando-se do contexto político e social do seu tempo que interfere diretamente em todas as relações, Lambert entrega um texto sobre a aventura de sua família enquanto presta uma homenagem à despedida, celebrando seu pai e também a arte de narrar.
“Aqui não é o luto que comanda, e eu teria dificuldade em pintar um retrato do meu pai sem pensar que é falso. Escrever “ele era…” ou “ele foi…” é necessariamente mentir, escolhendo o ângulo que imobiliza e anula o que nos mantém vivos, móveis, ágeis, nossas metamorfoses ao longo dos dias. Mesmo esse “ele”, que pressupõe uma unidade, é uma ficção. O que resta de nós é bem diferente e volátil. A vivacidade do presente. De sentimento. O rastro que deixamos para os outros. Essas partículas de tempo e afeto mesclados permanece em suspenso. Aqui, quem manda são elas, e com elas o sopro que sua morte deixou no meu coração.”
“A sociedade tem de se manter, as necessidades (heteros)sexuais têm de ser satisfeitas, o patrimônio tem de ser transmitido, os filhos têm de ser educados, e as mulheres, se trabalham, devem fazer isso como uma obrigação a mais, sem cobrar caro e de bom humor. Quando acabam, devem se apagar, delicadamente, gentilmente, colocando rolinhos no cabelo, assando bolos, cuidando dos netos e agradecendo. Sabemos disso. Fazemos dietas. Compramos lingerie que pinica. Ficamos contentes, agradamos, exaurimo-nos, cumprimos o programa: filhos, trabalho, alegria obrigatória e leveza imperativa. Achamos que ganhamos, mas perdemos. O sorriso e a silhueta, o dever conjugal e a felicidade doméstica. Perdemos. Se aceitarmos as regras de um jogo em que somos mercadorias perecíveis, se nos curvarmos à injunção que trança, juntos e num delírio consumista, casamento por amor, competência sexual, procriação, desenvolvimento pessoal - é porque já perdemos. Vamos perder de novo e de novo.”
Pai, essa figura enigmática na cultura brasileira... Seu relato me lembrou tantos atendimentos no consultório, me sinto particularmente atravessada por ele. Emocionada e pensativa. Obrigada por compartilhar e tbm obrigada pelos links com os textos alheios. Um beijo
fiquei muito comovida com seu texto <3 obrigada por ter dividido com a gente