#27 - Vinicius Barbosa entrevista Selva Almada
a autora argentina de Garotas Mortas e Não é um Rio esteve no Brasil e nessa edição conheceremos mais sobre o teor de suas publicações
a edição de hoje é diferente! pela primeira vez, teremos um convidado, o Vinicius Barbosa, idealizador do @latinaleitura, projeto que visa apresentar não somente a literatura, mas a história, a cultura e todas as complexidades que envolvem a América Latina. Vinicius teve a grande oportunidade de conhecer e entrevistar Selva Almada, autora de Garotas Mortas e Não é um Rio. neste caso, assim como vocês, estarei apenas como leitora/ouvinte, a palavra a partir de agora está totalmente com Vinicius. aproveitem, e espero que gostem tanto quanto eu do que ele e Selva têm para falar.
Selva Almada começou a escrever um novo livro. Talvez fosse um romance, mas nunca saberemos. Perdeu o arquivo quando seu computador quebrou. No início da nossa entrevista, perguntei sobre seu processo de escrita. “Não posso seguir adiante se sinto que não encontrei o começo”, disse ela. “Preciso ter o tom, a voz do relato, antes de seguir”. Quando contou sobre a pane no computador e o livro perdido, transpareceu calma e desapego. “Essa calma é porque não tinha encontrado o tom?”, perguntei. Com um sorriso de quem é descoberto, respondeu: “Acho que sim”.
Talvez para eu ter o tom deste texto, seja necessário dizer que Selva não gosta muito de café, ainda que beba, com um pequeno corte de leite. Sendo de Entre Ríos, prefere chá, mas está cansada. Passou as últimas 48 horas entre a Argentina, o interior de São Paulo e a capital, onde nos encontramos, numa sala-aquário de paredes laterais de vidro no prédio do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, a poucos metros do MASP. Logo depois de participar de um bate-papo com a coletiva Palabreria, grupo formado pelas artistas Fernanda Machado, Luiza Romão e Sofia Boito, que adaptaram para o teatro seu livro Garotas Mortas (TODAVIA, 2018, trad. Sérgio Molina), sentamos para conversar. Ou continuar a conversa iniciada coletivamente depois de um café cortado “para dar energia”.
UMA ESCRITORA REGIONAL MAS NUNCA PROVINCIANA
Selva Almada cresceu em uma cultura de pueblo, provinciana. Isto significa dizer que o interior do país exerceu uma importante influência em sua maneira de enxergar o mundo e, consequentemente, em sua produção literária.
Em O vento que arrasa, seu primeiro livro publicado no Brasil – pela antiga Cosac Naify com tradução de Samuel Titan Jr., mas com previsão de republicação para fevereiro de 2024 pela Todavia –, somos ambientados na região do Chaco argentino ao longo de quase dois dias que marcam o encontro entre Reverendo, um pastor que, junto à sua filha, percorre o país em sua missão de envangelização, e Gringo Brauer, um mecânico que vive em meio à natureza do norte argentino com dezenas de cachorros e um menino tratado como filho.
“Minha mãe dizia que durante uma tempestade”, relatou Selva, “você faz dois cortes no chão, como uma cruz, e ela se afasta para longe”. Brauer, o personagem, viu uma tormenta se aproximar em dado momento do livro, porém preferiu não cravar o machado no chão porque “Pelas gretas abertas, a terra pedia a gritos por um pouco de chuva. Não era o momento de desviar o curso das coisas”.
A vivência interiorana também é inspiração temática, como no enredo de Garotas Mortas. Numa manhã de novembro de 1986, na cidadezinha de Villa Elisa onde a jovem Selva nasceu, a escritora ouve no rádio sobre o assassinato de uma adolescente que morrera com uma apunhalada no coração enquanto dormia.
“Eu não sabia que uma mulher podia ser morta pelo simples fato de ser mulher, mas tinha escutado histórias que, com o tempo, fui ligando umas às outras. Casos que não terminaram com a morte da mulher, mas em que ela era objeto da misoginia, do abuso, do desprezo.” (GAROTAS MORTAS, p. 13)
Sem a cobertura da grande mídia, a trágica descoberta de que a própria casa de uma mulher poderia não ser um ambiente seguro impulsionou Selva a contar essa e outras histórias similares, no limiar da ficção e da suposta não-ficção. Investigou os crimes e se colocou como uma personagem narradora em primeira pessoa, fazendo “recriações, algo abominável no jornalismo”.
A temática da vida longe dos grandes centros urbanos está novamente em Não é um rio (TODAVIA, 2021, trad. Samuel Titan Jr.), último livro da autora, que nos apresenta uma intrincada relação entre personagens masculinos e seus passados. Enero Rey, o Negro e Eusebio costumavam pescar desde que eram meninos. Porém Eusebio já não está entre os vivos, e seu filho, Tilo, é integrado à tradição daqueles homens. Durante a pescaria, matam uma arraia com mais tiros que o necessário, em uma ilha na qual são forasteiros.
“Esse homem não é desse mato, e o mato sabe. Mas deixa. Que se meta, que fique o tempo que precisar para juntar lenha. Depois, o próprio mato vai cuspi-lo, os braços cheio de galhos, de volta para a margem.” (NÃO É UM RIO, p. 15)
Este é um livro que se passa no interior, mas o interior não está só na paisagem. Está também na própria forma, no ritmo de suas frases, na construção poética do texto de Selva, que ela atribui à influência dos vários poetas de sua região, como Juan L. Ortiz. O rural surge na aparente mas falsa calma das linhas dos personagens, “como uma panela a ponto de ferver [...] essa sensação de quietude, mas que por debaixo correm rios”, como disse na entrevista.
Certa vez, a crítica literária argentina Beatriz Sarlo disse que Selva é “uma narradora original”. Em outro momento, alertou: “É literatura interiorana, como a de Carson McCullers. Regional diante das culturas globais, mas nunca provinciana”. Se brasileira fosse, pelas histórias que escreve, pelas paisagens que situa, Selva Almada seria preguiçosamente apresentada como uma autora do “Brasil profundo”. Contudo, ela faz questão de lembrar: “A literatura argentina é feita por provincianos desde Sarmiento até hoje”.
[entrevista completa e alguns trechos transcritos e traduzidos]
VB: Estava pensando agora em algo que alguém disse hoje por aqui… A questão da ausência-presença das mulheres em seus livros. Por exemplo, em Garotas Mortas, as mulheres não estão ali em carne-e-osso – ainda que estejam; em O vento que arrasa, as mães não estão, ainda que estejam; e Não é um rio também há isso que alguém disse hoje, essa coisa fantasmagórica. É intencional falar das mulheres mesmo quando está falando dos homens, pela ausência, para lembrar ao leitor que falar dos homens é falar das mulheres e vice-versa?
SA: Nunca me causou nenhum conflito que os protagonistas dos meus romances fossem homens porque, assim como você acabou de dizer, da mesma maneira que se fala das mulheres ou as mulheres são faladas da mesma maneira. Se pensarmos nos três romances como uma trilogia de homens, onde os homens são os protagonistas… Na verdade, não é um romance que exalte a masculinidade, e sim que está falando de universos onde a masculinidade é asfixiante, perturbadora. Bom, nesse universo também estão as mulheres, está tudo aquilo que não é “o homem que manda”, talvez tudo aquilo que eles vivem sob a sombra desta masculinidade tóxica e asfixiante. Então, ainda que as mulheres não sejam protagonistas dos relatos, me parece que elas estão presentes e, justamente, essa ausência faz com que essa presença seja por momentos muito mais forte e enfática.
VB: Você fala das distintas formas de violência e, ao mesmo tempo, nós vivemos num estado de permanente violência. Como faz para falar de algo tão cotidiano de uma maneira que o leitor possa olhar para isso, que é cotidiano, de um modo distinto? Como olhar novamente para algo que é tão comum, que está aí o tempo todo?
SA: Me parece que a violência é parte desses universos que eu relato. Não a vejo separada dos outros componentes do texto, e sim vejo tudo como algo emaranhado. Então, não penso como um elemento distinto a outro que pode acontecer no relato, que possa ter a ver com as relações familiares ou afetivas, que estão também bastante presentes nos meus relatos. Com o amor… A violência é uma parte a mais desse universo, não a penso como algo diferente. E, assim, nessa coisa completa e complexa que é qualquer relato, como todos esses componentes, bom… Aparece como outra linha de leitura. Mas não significa que eu a pense diferente para que seja lida diferente. Acontece como acontece outras coisas nesse universo.
VB: Bom, preciso te perguntar isso… Toda oportunidade que tenho de falar com uma escritora latino-americana que não seja brasileira, faço essa pergunta [...] Essa violência cotidiana, essa ambientação, que no caso dos seus livros, do interior, do norte da argentina… Você está falando do interior da Argentina de modo geral ou, no fim das contas, está falando de algo mais geral, como da América Latina, por exemplo? [...] Percebe que seus livros falam de uma realidade local ou, ainda que fale de uma realidade local, está falando também de uma realidade social latino-americana?
SA: Acho que há, sim, um tipo de universalidade nos meus textos, mas no geral, na literatura que gosto de ler como leitora também acontece isso. Para citar um romance emblemático como Pedro Páramo. Na realidade, não sei sobre o que Rulfo queria falar, mas se passaram anos desse romance, muitas décadas, e ainda podemos ler Pedro Páramo e levá-lo para nossa experiência pessoal, nossa vivência pessoal, vivendo na Argentina ou em outras partes da América Latina. Acho que há algo universal na violência. Obviamente se dá sob diferentes formas de acordo com o lugar, inclusive dentro de um próprio país. A violência urbana não é igual à violência rural. É um pouco ingênuo esse olhar que há por parte de alguns autores urbanos, esse olhar bucólico, onde as pessoas são boas e não têm más intenções. São tipos diferentes de violências. Mas a violência me parece algo que… Bom, na realidade é algo que nos atravessa como sociedade, como pessoa, está presente o tempo todo em nosso cotidiano. E acho que isso também torna universais os relatos que abordam a violência ou que tenham a violência como um dos eixos dessas tramas. É só que eu nem sequer me coloco, quando estou escrevendo, de que “estou falando do norte da Argentina”. De fato, não me pergunto nem se “estou falando de algo”. E, bom, muito menos vou pretender estar falando da violência latino-americana. Mas, quando aparecem determinados temas que são universais… Bom, os leitores podem sentir que falam de sua própria cidade, de sua própria comunidade ou de seu próprio país, ainda que não tenha nada a ver.
Muy bueno :)