#14 - o fim de Succession, Vivian Gornick e uma declaração de amizade
hoje entreguei intensidade
O LINDO ENCONTRO COM VIVIAN GORNICK
lá no início do ano, Afetos Ferozes me chamou pela capa. Vivian registra memórias da complexa e ambivalente relação com sua mãe. acredito que o mais bonito desta obra é a coragem da autora de colocar em palavras honestas e cruas, as dificuldades e também cumplicidades existentes no vínculo mãe-filha. é possível encarar o livro como algo íntimo, um desabafo, principalmente por não possuir divisões/pausas, ser contínuo. conhecemos várias esferas da vida de Vivian, mas com certeza as reflexões acerca de sua mãe, rendem os trechos mais instigantes:
“Em vida, papai nunca havia sido tão real para mim quanto na morte. Sempre uma figura levemente indistinta, benigna e sorridente, ali em pé atrás das encenações de mamãe acerca da vida conjugal, ele se tornou e permaneceu o que eu percebia como o instrumento necessário para a desolação permanente dela. Era quase como se mamãe tivesse vivido com papai para poder chegar àquele momento. Sua agonia era tão devastadora que parecia existir por decreto. Para mim, ela sem dúvida reordenava o mundo. O ar que eu respirava estava impregnado de desespero, o que o tornava denso e intoxicante, perigoso e arrebatador. A dor da minha mãe passou a ser meu elemento, o país no qual eu vivia, a regra perante a qual eu me inclinava. Ela me comandava, me forçava a reagir contra minha vontade. Eu desejava infinitamente afastar-me dela, mas não era capaz de sair do aposento quando ela estivesse ali.”
“Minha pele estava impregnada dela. Ela estava por toda parte, recobria-me inteira, por dentro e por fora. Sua influência estava aderida, como uma membrana, a minhas narinas, minhas pálpebras, minha boca aberta. Eu a sugava para dentro de mim toda vez que inalava. Afogava-me em sua atmosfera sedante, não conseguia fugir do caráter intenso e claustrofóbico da sua presença, do seu ser, da mulher sufocante e sofredora.”
fui novamente atraída por Vivian Gornick com o lançamento Uma Mulher Singular, uma espécie de continuação de Afetos Ferozes, em que a autora registra mais algumas de suas memórias. desta vez, foca em meditações sobre amizades, a vida na cidade de NY, o andar e se encontrar naquele desconhecido aleatório, interações com estranhos que se tornam parte essencial de seu cotidiano, frustrações amorosas e solidão. enfim, uma reunião de histórias, devaneios e aleatoriedades que dizem muito sobre ser humana, ser mulher e ser inconstante.
“Foi graças à descoberta e à exploração do inconsciente que Freud fez suas descobertas mais importantes, a principal delas a de que do nascimento à morte estamos, todos nós, sem exceção, cindidos contra nós mesmos. Queremos ao mesmo tempo crescer e não crescer; ansiamos por prazer sexual e o prazer sexual nos aterroriza; detestamos nossas próprias agressões - raiva, crueldade, necessidade de humilhar -, porém elas decorrem dos agravos que estamos menos desejosos de deixar para trás. Mesmo nosso sofrimento é uma fonte tanto de dor como de reconforto. O que Freud achava mais difícil de curar em seus pacientes era a resistência de ser curado.”
“Desde minhas memórias mais antigas, eu temia ser julgada insatisfatória. Se fizesse o trabalho que tinha vontade de fazer, com certeza ele não ia ficar bom; se fosse atrás das pessoas que tinha vontade de conhecer, com certeza seria rejeitada; se tratasse de ficar tão atraente quanto possível, continuaria com um aspecto comum. Em torno dessas lesões do ego, uma psique encolhida havia tomado forma: eu me dedicava a meu trabalho, mas sempre de má vontade; fazia um movimento de aproximação buscando as pessoas de quem gostava, mas nunca dois; usava maquiagem, mas me vestia mal. Fazer bem uma dessas coisas ou todas elas teria sido me comprometer despreocupadamente com a vida - seria amá-la mais do que amava meus medos -, e isso era uma coisa que eu não podia fazer. O que podia fazer, aparentemente, era devanear enquanto os anos se sucediam: continuar desejando que “as coisas” fossem diferentes para poder ser diferente.”
destaco ainda um último trecho super especial que remeteu a relação que mantenho com uma amiga, que já está há pelo menos sete anos na minha vida (sendo essa uma das relações mais duradouras que possuo hoje).
“O fato é que nossa conversa é a mais prazerosa para ambos, e não conseguimos abrir mão dela nem por uma semana. O jeito como nos sentimos em relação a nós mesmos quando estamos conversando é que cria o magnetismo muito intenso que um exerce sobre o outro. (…) Então por que, seria o caso de perguntar, a gente não se encontra mais do que uma vez por semana, não desfruta mais do mundo juntos, não proporciona um ao outro o prazer da conversa cotidiana? O problema é que nós dois temos tendência a ser negativos. Seja qual for a circunstância, para nós o copo está perpetuamente semivazio. Ou Leonard está com uma sensação de perda, fracasso, derrota - ou eu é que estou. Não conseguimos evitar. Gostaríamos que não fosse assim, mas é desse modo que a vida se apresenta para cada um de nós: e o modo como a vida se apresenta é inevitavelmente o modo como a vida é vivida.”
Juliana dia desses brincou que eu nunca a mencionei aqui na famigerada newsletter, e eu dizia que não havia chegado o momento certo. agora afirmo com propriedade que chegou, graças a Vivian Gornick, que descreve perfeitamente minha relação com essa amiga. eu e Juliana nos conhecemos na faculdade, e é a típica amizade que foi crescendo e ganhando intimidade com o tempo. se qualquer urgência acontecer na minha vida, não seria minha mãe a primeira pessoa a quem ligaria, mas sim para a Juliana, é essa a importância que a enxergo. inclusive, é ela quem cuida do Juca na minha ausência, e uma das vezes, chorou ao se despedir dele. isso é o suficiente para qualquer um entender o porquê a mantenho na minha vida, e a grandiosidade do laço que temos hoje. talvez isso mude algum dia (eu e meu medo da inconstância, das pessoas irem embora da minha vida, pois muita gente já foi), mas no momento, Juliana é um dos exemplos mais bonitos que tenho de família.
A TRAGÉDIA FAMILIAR EM SUCCESSION (possíveis spoilers ⚠)
não é preciso reforçar a grandiosidade da série em movimentos que escancaram as feridas profundas de uma dinâmica familiar completamente disfuncional. depois da morte do patriarca Logan, uma figura imponente, que se prova quase imortal e insiste em continuar presente na vida dos filhos de diferentes formas, acompanhamos a tentativa de Shiv, Kendall e Roman na construção de uma identidade que se separe dessa figura marcante (o que parece impossível), enquanto buscam a cadeira de liderança do império construído pelo pai, como se só dessa forma, pudessem provar o valor para aquele que nem está mais presente.
o que mais gosto nessa série é justamente as marcas da negligência, decepções, abandonos e traições que os personagens carregam. são feridas que parecem não cicatrizar, consequência de uma constante tentativa de aprovação daquele homem que é, no fim das contas, o responsável pelo fracasso emocional desses filhos fracos, desprezíveis, inconsequentes e despreparados (mas que mesmo assim, desfrutam de extrema facilidade em exercer influência sob o mundo: tivemos alguns exemplos durante a série da impunidade que cerca seus atos criminosos. a lei não existe para eles, pois são eles a própria lei que regem a cadeia desigual e nojenta da sociedade). mais do que isso, Succession escancara a podridão do dinheiro, o constrangimento de pessoas que não medem esforços para obter o que querem e a bizarrice que é ter o mundo controlado por tais pessoas. a família Roy detém um poder obsceno, e essa ganância é reforçada ao manipular/humilhar não somente aqueles que não nasceram em berço de ouro, mas principalmente os próprios familiares. o mundo é uma marionete que esses irmãos controlam com influência desproporcional sobre o resto da sociedade, sendo reflexo do sistema maior que habitam. por baixo deste poder insaciável, existem crianças completamente quebradas que carregam o legado do caráter ardiloso, interesseiro e adulador de um homem incapaz de sentir afeto por qualquer coisa que não o ofereça benefícios. o fato é que mesmo com todo o absurdo que ronda as transações e relações de Succession, é uma série que fica com a gente, que exala humanidade em toda a sua desumanidade, que gera sentimentos infinitamente contraditórios, ambivalentes e ambíguos, tais como os dos próprios personagens (que para mim, é impossível torcer a favor). por todos esses motivos, e também pelo cuidadoso trabalho de câmera, fotografia, figurino, atuações e roteiro; ocupa o pódio de melhores séries já vistas, com as produções mais impecáveis e surpreendentes, da qual não esquecerei com o passar dos anos.
poderia me estender por infinitas linhas para exemplificar tudo que essa série é capaz de provocar pela grandiosidade em contar uma história podre e mais real do que podemos imaginar, mas encontrei alguns textos que falam melhor do que eu:
As lições de ‘Succession’ na vida real: o anti-modelo para um grande legado
Succession: as crianças quebradas de Logan Roy
Shiv Roy: nem vilã, tampouco uma heroína em Succession
Succession entrará para a história da TV após episódio bombástico
MEME DA SEMANA
nesta e nas próximas edições, deixarei um meme encerrando as reverberações aqui presentes, pois o que é a vida contemporânea sem memes?