#60 - o modo de vida doméstico em seus amores e horrores
Tese Sobre uma Domesticação + Cenas de um Casamento
não é novidade o quanto aprecio a literatura de Camila Sosa Villada, que me conquistou à primeira vista com O Parque das Irmãs Magnificas. sua prosa livre de qualquer censura, revelando o desprezo e brutalidade, mas também as inesquecíveis bonitezas e a festa de ser uma travesti. Tese Sobre uma Domesticação chega para consolidar a grandiosidade dessa escritora destemida, irreverente e assertiva ao questionar até que ponto é possível domesticar um corpo e uma vida.
desde a primeira página foi bonito sentir que eu estava diante de uma história muito singular, que parecia fugir de todos os arquétipos esperados quando falamos não só sobre uma protagonista travesti, mas sobre qualquer corpo dissidente que ocupa lugares inesperados e pouco galgados socialmente. a exuberância contagiante da protagonista constrasta o tempo todo com os limites de um cotidiano em que arte, desejo e novas configurações familiares se misturam. seja pela voz inconformista ou pelo corpo rebelde que não se encaixaria em em nenhum tipo de conveniência mesmo que quisesse, Tese Sobre uma Domesticação me fez pensar nos dramas comuns que todos que seguem uma vida normativa estão sujeitos, e quantos corpos dissidentes enxergamos ocupando esse lugar: “Saíram para passear e ficaram se olhando nos vidros das vi-trines, e gostaram do que viram; os demais, aqueles que assistiam, também apreciaram. O cartão-postal de uma família jovem continuava sendo uma carta na manga para obter privilégios, continuava sendo uma promessa. E também um espetáculo. Um casal jovem e lindo com uma criança tão bonita. Uma atriz do seu quilate, passeando com a família pelo parque, como se nada tivesse mudado no mundo, como se a promessa de filhos fosse suficiente para o perpetuamento da espécie.” Camila escancara a hipocrisia de uma sociedade que vive da imagem de pessoas apagadas e mortas diariamente. seja através da protagonista atriz, do marido advogado gay, do filho adotivo, do pai/irmão/mãe da atriz que entram em cena para ilustrar o protótipo perfeito de cidadãos de bem, orgulhosos da própria ignorância enquanto se agarram aos privilégios propícios.
Ele gosta do corpo da esposa. E não é exatamente seu corpo, mas o que esse corpo lhe oferece, a inteligência, as horas de conversa, o riso durante o sexo, o jeito de estar na casa, seu bailar, a dança com que ela o seduz quando estão empenhados em gostar um do outro.
a linguagem, a escrita e cada ação aparecem como um ato de resistência e uma recusa de estar onde se espera mesmo que à primeira vista pareça estar, numa dinâmica que por vezes soa como um conto de fadas incomum ou uma novela, em que temas recorrentes são abordados de forma inédita: a crise do amor romântico dentro de um casamento, a beleza do amor romântico apesar das crises, o relacionamento aberto, crianças adotadas, crianças soropostivas, medos e culpas, o sexo que se mistura com a violência e os papéis sociológicos dentro de uma família em meio a todo esse embaraço. entre páginas inventivas carregadas de melodrama e erotismo, há espaço para a ousadia, para o prazer, para a ternura, para o amor materno, para o cotidiano e para muitos questionamentos acerca do que fazer quando se cai nas garras das convenções do socialmente respeitável, aquilo que tanto buscamos escapar ao mesmo tempo que caímos na tentação de ser preenchidos pela paz de ocupar um lugar protegido pelo pacto da normalidade.
dia desses me deparei com uma crônica de Marina Colassanti que já conheço há anos, mas havia me esquecido do quanto mexeu comigo quando li pela primeira vez. coincidentemente me fez pensar em Tese Sobre uma Domesticação e em tudo que a gente se acostuma para estar dentro desse pacto de normalidade:
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
em meio ao debate da domesticação, me veio também na cabeça, o impecável e perfeito Cenas de um Casamento (1973), minissérie de Ingmar Bergman que foca num casal heteronormativo, ao contrário de Tese Sobre uma Domesticação. Marianne e Johan vivem um casamento estável com empregos estáveis e sentimentos aparentemente estáveis. foram felizes e românticos, mas hoje o contentamento prevalece numa dinâmica que passa a ser questionada após uma discussão enfurecida entre eles e um casal de amigos durante um jantar. o amor ainda existe no cenário de acomodação que ambos se encontram?
ainda que a atmosfera e a carga dos diálogos sejam extremamente sufocante, me lembro de ter maratonado a série em um fim de semana, completamente vidrada diante da tela, e impressionada com aquela relação que escancara com beleza e força, o desconcerto/desencontro deste casal que se mistura com uma dependência profunda, mas também com uma ternura que só é possível existir entre aqueles que partilham uma intimidade proporcionada pela rotina. percebe-se o quanto Cenas de um Casamento torna-se uma referência para todas as emulações de relacionamentos no cinema, seja pela dissecação meticulosa dos personagens ou pela honestidade em retratar a imperfeição do amor entre duas pessoas, sem o mínimo de romantização. tudo isso entre diálogos e monólogos impecáveis que me causaram arrepios, que castiga seus personagens e também o espectador. é impressionante a capacidade de Bergman em provocar uma sensação de arraso, de cansaço e fadiga. a densidade faz com que a gente se inclua como parte daquela dinâmica, viva na pele de ambos os personagens… afinal quem nunca sentiu uma vontade incontrolável em estender aquilo que está sepultado? as palavras de Bergman têm uma força que não dá para se medir, e é justamente a intensidade da comunicação, compreensão, desgaste e renúncia que definem uma relação (seja ela amorosa ou não).
a incapacidade de separação entres os dois chega a ser agonizante, mas também extremamente palpável: aquela falta de coragem em deixar o que o desconforto já conhecido por ser menos desconfortável do que o completo desconhecido que muitos de nós evitamos. a decadência do casal não é ocasionada somente pelos sentimentos do espaço privado, mas por atitudes de um coletivo que se destrói desde o princípio de suas relações ao sustentar e insistir num sistema completamente falho (seja a monogamia, o capitalismo ou patriarcado).
me surpreendi ainda positivamente com o olhar de Bergman que coloca em perspectiva temas como o sexismo, o aborto, anseios femininos e questionamentos acerca da posição da mulher em um casamento e na sociedade como um todo, além da masculinidade absolutamente frágil e patética de Johan com suas crises de homem branco comum de meia-idade, que por vezes me deu vontade de socar a televisão (Johan por exemplo repudia o movimento feminista, representando seu sentimento de posse em relação as mulheres ou a recusa em ser pior na cama que o atual marido da ex-mulher, e ainda a indiferença que pode ser encarada também como medo diante qualquer conquista de Marianne, recorrendo a violência física quando se sente diminuído).
Cenas de um Casamento é um retrato assertivo do significado de um casamento tradicional como ferramenta de opressão para as mulheres, que são objetificadas, ornamentais e descartáveis. muitas cenas consolidam essa afirmação, principalmente por parte de Johan, mas a cena inicial da série já ilustra perfeitamente por si só: durante uma entrevista para uma revista, ao responder a pergunta sobre como cada um se define, Johan tece pelo menos doze elogios a si mesmo, enquanto Marianne se vê confusa, colocando-se como somente mãe e esposa. apenas com o passar das cenas, descobrimos que a mesma é na realidade uma advogada de relativo sucesso. nas poucas vezes que Marianne tenta falar sobre seus feitos para além do espaço privado, a entrevistadora interrompe sua fala para ela que pose para foto, mudando de assunto em seguida.
encerro essa longa edição com um monólogo de Marianne, sendo um trecho de seu diário que ela lê para o marido (enquanto ele caiu no sono 🫠), e que evidencia a profunda angústia que é adentrar essa série, mas também a sua magnitude:
“Ontem, fui tomada por uma alegria despreocupada. Pela primeira vez, esse ano, sinto uma alegria de viver, ansiosa em saber o que o dia trará. De repente, viro-me e olho para uma velha foto de escola de quando eu tinha 10 anos, pareço detectar algo que me escapava até então. Para minha surpresa, devo admitir que não sei quem sou. Não tenho a mais vaga ideia. Sempre fiz o que me mandaram. Até onde me lembro fui obediente, correta, quase humilde. Me impus algumas vezes, quando menina, mas minha mãe me puniu por minha falta de modos, com severidade exemplar. Minha educação e a das minhas irmãs tinha o objetivo de nos tornar agradáveis. Eu era feia e desajeitada, um fato do qual sempre me lembravam. Mais tarde percebi que, se guardasse meus pensamentos e fosse agradável e previsível, seria recompensada. A maior decepção começou na puberdade, meus pensamentos e sentimentos giravam em torno de sexo, mas nunca disse isso aos meus pais. Nem a ninguém. Ser enganosa e reservada se mostrou mais seguro. Meu pai queria que eu seguisse seus passos e fosse advogada. Dei indiretas de que queria ser atriz ou fazer algo no mundo do teatro. Mas eles riram de mim. Desde então, sigo fingindo, forjando meus relacionamentos com os outros, com os homens. Sempre atuando, numa tentativa desesperada de agradar. Nunca considerei o que eu queria e sim o que ele quer que eu queira. Não é falta de egoísmo, como costumava pensar, é pura covardia. Pior ainda, provém da minha ignorância de quem eu sou. Nunca tive uma vida dramática. Não tenho talento para esse tipo de coisa. Mas, pela primeira vez, sinto-me empolgada com a perspectiva de descobrir exatamente o que quero fazer da vida. No mundo confortável em que Johan e eu vivíamos e tinhamos como certo, há uma crueldade e uma brutalidade implícitas que me assusta mais e mais quando penso nele. As armadilhas da segurança vem com um preço alto, a erosão constante da sua personalidade. É muito fácil nos primórdios impedir as tentativas de uma criança de se impor. No meu caso, foi executado com injeções de um veneno 100% eficaz. Culpa. Primeiro, era dirigida a minha mãe. Depois, aos outros. E finalmente, a Jesus e Deus. De repente, vislumbro o tipo de pessoa que eu teria sido se não tivesse permitido essa lavagem cerebral. E me pergunto se estou desesperadamente perdida. Se o potencial para a alegria que era da minha natureza, está morto ou se está apenas dormente e pode ser acordado. Que tipo de esposa e mulher eu teria me tornado se tivesse usado meus recursos como deveria? Johan e eu teríamos nos casado? Estou certa que sim, pois se eu analisar honestamente, nos amávamos verdadeiramente e de forma devota e passional. Nosso erro foi não nos desligarmos de nossas famílias para criarmos algo digno em nossos próprios termos.”
Também fui fisgado por esse primeiro: tô louco pra ler o novo.
Esse livro rendeu uma baita discussão no meu clube do livro! e olha que achei a personagem detestável kkkkkk
não conhecia o filme, fiquei curioso ❤️ (lindo monólogo)