#59 - a ruína e a leveza de Julia Dantas (e de todos nós)
Ruína y Leveza + A Mulher de Dois Esqueletos + Ela se Chama Rodolfo
“Queria fazer tudo e qualquer coisa. Aceitava o que a vida me jogasse. Eu queria tomar tudo do mundo e dar tudo de mim. Queria ter tudo. Queria ser tudo. E tudo que fosse, queria que fosse eu.”
cerca de uns dois anos atrás, me deparei com Ruína y Leveza. honestamente, a capa e a proposta não me chamaram atenção à primeira vista. despretensiosamente, passei os olhos por alguns trechos, que em compensação, gritaram para que eu sentasse a bunda no sofá e o devorasse. senti que aquele livro era para mim, e finalizei a leitura completamente atordoada pelas muitas sensações que Julia Dantas me proporcionou. o realismo tão presente nessa história talvez seja o grande mérito da escritora que hoje tem todo o meu coração. Julia abarca as epifanias que decorrem daqueles momentos momentos de grandes perdas, a profunda tristeza diante o mundo e as súbitas rupturas capazes de transformar toda a nossa vida. acho lindo como uma história pessoal é transformada numa história plural, em que se vê o convergente, que contrasta e nos aproxima do periférico e do marginal, ainda que a protagonista esteja longe de ocupar esses lugares.
Sara atravessa os escombros da própria libertação neste romance on the road ao decidir viajar pelo Peru após largar o emprego e refletir sobre o recente término de namoro. assim, Julia se joga numa jornada de reconstrução, autoconhecimento e de conhecimento coletivo, como se entrando em contato com pessoas que jamais imaginaria, se aproximasse mais de si mesma. o desejo de fuga tornou-se o maior encontro consigo que poderia ter. cada página e cada palavra do livro me lembrava a longa e tortuosa estrada de olhar para dentro, misturando com a experiência singular de olhar para a latinidade, para um território, um país ou uma cidade não com olhos de turistas, mas com olhos humanos e atentos, que é a forma que Sara olha para os nossos vizinhos latinos (mesmo tão próximos geograficamente, são ao mesmo tempo tão diversos em sua cultura ainda quase desconhecida para nós).
acima de tudo, o que mais me encantou em Ruína y Leveza, foi ver tão de perto os anseios e incômodos presentes na trajetória de Julia, as sensações que conversaram diretamente com os dilemas acerca do se apaixonar, das levezas e das ruínas que encaramos no cotidiano imprevisível ainda que monótono, dos questionamentos infinitos que parecem crescer conforme os anos passam. destaco duas das passagens que mais me arrebataram:
“Se aos vinte e seis anos de idade eu tinha encontrado a felicidade, o que buscaria pelas cinco décadas seguintes? Não que me fossem faltar coisas para fazer — viriam a casa a cuidar, os filhos a criar, a saúde a remendar —, mas o que eu buscaria, almejaria, pelo que sofreria à noite antes de dormir? Se o amor é a única coisa pela qual vale a pena sofrer, eu estava diante de uma vida sem sofrimentos. Nós poderíamos passar fome em alguns anos, ter que vender o apartamento, entediar-nos da rotina, mas enquanto nos amássemos, tudo estaria bem. E se, por outro lado, o amor morresse, ou se nós o destruíssemos, ou, em um descuido, ele fosse esquecido embaixo do tapete junto com os restos de uma briga, ou no supermercado na estante dos guardanapos, ou em uma mesa de bar no fundo de uma garrafa, perderíamos o melhor que havíamos encontrado na vida e jamais nos perdoaríamos. Eu tinha tudo o que importava, portanto, já não havia o que desejar. Seria isso a felicidade? E toda a parte da felicidade que depende de trabalhar com prazer, realizar algo importante, ser reconhecido como competente? E todo o entusiasmo encantamento que vêm dos jogos de sedução e das paixões recém-nascidas que eu já não teria? E onde estava aquela emoção borbulhante que se transborda em sorrisos e contagia os arredores, que só existe no princípio da paixão? E pensando em tudo isso enquanto supunha que Henrique pensava em coisas similares, eu me dei conta de que o amor não me dava felicidade, mas serenidade e constância. O amor não me fazia feliz, me fazia bem. E a partir daí, dependia muito mais de disposição do que de sentimentos a parte de fabricar a felicidade. Foi uma descoberta valiosa que se tornaria rapidamente inútil.”
“Eu não tinha me apaixonado por Henrique à primeira vista, mas desde a primeira noite eu sabia que poderia me apaixonar por ele. É uma sensação singular, talvez melhor que o apaixonar-se em si. Você olha para alguém e em três segundos sabe que ele tem algo sobrenatural, algo instantaneamente te toca, mas ainda é cedo e ainda é pouco e ainda é novo, e você pode escolher se quer conhecer essa pessoa, essa entidade que te atrai, ou se prefere ir até o bar e pedir um suco de laranja com vodca e dançar até de manhã e esquecer qualquer vestígio daquele momento. É uma liberdade arrebatadora, o minúsculo instante em que você não sabe se cai no apaixonamento ou se, nessa rodada, você passa. Esses três segundos, velozes segundos, fazem a vida valer a pena. O que vem depois, não importa o que acontecer, será sempre mais entediante e menos pleno. Ou você se apaixona. Ou você dança até de manhã. E a partir disso ocorrerão outros milhões de eventos e a isso chamaremos vida e é só. A adrenalina está na liberdade da dúvida entre seguir e se afastar.”
de tão encantada que me vi pela capacidade de Julia Dantas em descrever tantos dilemas da vida comum, peguei Ela se Chama Rodolfo com grandes expectativas. em resumo, poderia descrever o livro como um retrato bonito do nascimento de uma amizade em meio a solidão. gosto muito de Julia ter escolhido um porteiro noturno como protagonista, função que lhe cai bem na busca do isolamento após um abandono. quando de repente uma tartaruga chega em seus dias modorrentos junto a alguns e-mails misteriosos, Julia Dantas evidencia mais uma vez aqueles sentimentos clichês, mas universais, adultos, desilusões e acasos da existência contraditória e complexa com um alívio cômico assertivo. é engraçado pensar que livros como Ela se Chama Rodolfo servem como lembrete de que nossas imperfeições existem justamente em contrapartida da nossa humanidade, engraçado porque jamais deveríamos esquecer. por vezes, me pego numa autocobrança interna massacrante, acabo comigo mesma por ter errado no trabalho, num relacionamento, numa conversa ou nas tarefas básicas do dia a dia. ler os dilemas do protagonista e principalmente dos personagens que lhe atravessam, me conectou diretamente com a possibilidade de ser quem eu sou por alguns dias sem me questionar a cada momento que me olhava no espelho. no fim, é uma história simples sobre um rapaz quebrado que ao conhecer lugares inusitados da própria cidade, cruza com pessoas antes desconhecidas, mas essenciais para arrancá-lo de uma solidão que ele mesmo escolheu mergulhar. é sobre identidade, sobre trajetória, sobre sair do casco que a gente se enfia, sobre colocar a cara no mundo, sofrer todas as dores e bonitezas que o sol e a chuva têm a oferecer.
anos depois, reencontro Julia em seu mais novo lançamento: A Mulher de Dois Esqueletos, que veio para confirmar aquilo que eu já sabia: tenho muito em comum com Julia Dantas, e talvez seja difícil encontrar alguém que não tenha. dessa vez, a autora foge de uma narrativa convencional para construir uma voz ficcional dentro de outras vozes ficcionais, uma mistura de romance com contos e até mesmo ensaios. em um dos capítulos, que foi com certeza o grande brilho do livro na minha concepção, Julia elenca os muitos medos que conversam com uma escritora que cogita a possibilidade de ser mãe, de carregar dentro de si um outro ser humano, de passar por um parto, de assumir a completa responsabilidade pela vida de um terceiro, de assumir o risco do amor incondicional, de nunca mais ser quem é, de se ver dominada pela domesticidade que antes lhe parecia sem abominável: “O MEDO de viver um lugar-comum. De ser parte de uma família tradicional. O medo de deixar de ser descrita como alguém de espírito livre às vezes talvez um pouco caótica e passar a ser descrita como uma excelente mãe ou ainda pior: como uma mãe que, coitada, está tentando. O medo de ser medida e definida por uma criança de menos de quatro quilos e cinquenta centímetros de altura. Animais domésticos.”
o romance evidencia ainda um relacionamento no mínimo inconveniente, a dificuldade de uma mulher, que em meio a pandemia do coronavírus, vê seu espaço dominado por um homem que além de CHATO (por falta de escolha, autoestima ou simplesmente porque ás vezes a gente faz umas pataquadas sem sentido nenhum nessa vida), prejudica sua rotina com a escrita e desdenha do inconformismo diante o mundo, diante situações banalizadas que não deveriam jamais em hipótese alguma terem se tornado banais. dentro de tantos elementos contemporâneos e pertinentes, destaco mais uma vez a grandiosidade de ver nesse romance breve a maternidade como dúvida, como indecisão, trazendo à tona questionamentos vistos como “fúteis” ou “egoístas” quando ousamos não desejar uma função que ditará o resto de nossas vidas:
“O MEDO de engordar. Medo de que as suas roupas não te reconheçam, de que o espelho não te reconheça, de que seu marido não te reconheça. Medo de ter que andar com um corpo que você não entenderá como funciona. Medo de ter dor na lombar, fazer xixi a cada dez minutos, não amarrar os próprios cadarços. Medo de não encaixar nas cadeiras, passar calor de noite, sentir dor sob os elásticos das calcinhas. O medo de engordar é o medo de perder o controle de quem se é.”
“O MEDO maior de todos:
O pior de todos:
Aquele que você mal consegue dizer:
Que você não consegue elaborar:
Que espreita logo ali, ao virar a chave de casa:
Que espreita logo aí, dentro da sua preguiça:
O medo quentinho da domesticidade.
O MEDO de passar os genes errados, porque você torce para que a criança herde a sua inteligência, o seu cabelo volumoso e o seu coração de ferro, mas e se ela nascer com o seu nariz, o seu déficit de atenção e a sua tendência à pele acneica?
O MEDO das fraldas. O medo de que o bebê seja alérgico e exija fraldas de pano. O medo de que seja alérgico e exija sua atenção às mínimas brotoejas. O medo de que seja alérgico a lenços umedecidos porque você foi uma criança desesperadamente alérgica e passava a vida dentro de banheiras e encheu a paciência de muita gente. O medo de ser menos paciente do que foram com você.”
poderia escrever pelo menos mais quarenta parágrafos dos livros de Julia Dantas, mas em tempos de imediatismo, acho que escrevi bem mais do que deveria. complemento a reflexão sobre vida e passagem do tempo com um trecho do artigo de Anne Carson que vi no perfil do @rafaelzacca. Anne escreveu sobre seu Mal de Parkinson pela primeira vez, relacionando com o desejo de escrita e com a fugacidade dos anos que nos atropelam, independentemente das escolhas, das felicidades e dos choros:
pra finalizar de vez, reuni três indicações de cursos bacanas que vão rolar em setembro na ESCREVEDEIRA, a firma que adoro. como sempre, a curadoria está impecável, mas fiz o esforço de destacar aqueles que mais me chamaram, que quero e preciso muito participar. já deixei na minha agenda e espero ver alguns de vocês por lá. com o cupom UMCANTO10 você ganha descontinho na compra desses e de qualquer atividade do site (exceto clubes de leitura).
Que maravilhosidade, nunca tinha ouvido falar dessa autora, Catharina. Agora quero muito ler! Obrigada!
Eu adoro "Ruína y leveza". Me surpreendeu muito! Não li os outros da autora, e teu post me deixou com muita vontade de fazer isso :) Inclusive, a newsletter da Julia aqui no Substack é muito boa, embora o tema que ela documente seja bastante triste: as enchentes no RS.