#52 - a literatura infantil que acolhe adultos
A Contradição Humana, Menino Estrela, Cem, Obrigado a Todos! e Com o Tempo
umas semanas atrás, enquanto lia o incrível Literatura Infantil — lançamento de Alejandro Zambra, senti um desejo enorme de revisitar alguns dos livros classificados como infantil que guardo com carinho num cantinho da estante, livros inclusive que não necessariamente li na infância ou dos quais nunca tive coragem de me desfazer.
dentre eles, o querido A Contradição Humana, de Afonso Cruz está há anos comigo. relendo hoje, me lembro da sensação de assombro e surpresa que a leitura me causou quando mais nova. sem ainda ter exata clareza do que significava uma contradição, passei semanas encantada com o livro e seus exemplos certeiros, folheando pra lá e pra cá enquanto observava ao meu redor, imersa na tentativa de fisgar contradições dos adultos que me rodeavam. a medida que crescemos, as contradições parecem estar por toda parte. e ainda que reconheçamos a contradição no cotidiano, quantas vezes a assumimos em nós?
Afonso Cruz brinca com as palavras para elucidar contradições cômicas ou melancólicas: um ser que passa a vida na academia, se gaba de ter as coxas firmes, mas é incapaz de subir poucos lances de escadas; um vizinho músico que só toca canções tristes e se vê feliz com isso; a tia que ama pássaros, mas os prende em gaiolas; uma mulher que possui todos os amigos do mundo e ao mesmo tempo sente-se terrivelmente sozinha. com ilustrações feitas pelo autor tão poéticas quanto suas palavras cheias de expressões linguísticas e duplos sentidos, Afonso traduz incoerências cotidianas como ninguém!
uma leitura infantil mais recente foi Menino Estrela, de Claire A. Nivola. conheci o livro antes mesmo de chegar no Brasil pela Baião, completamente por acaso em um dos filmes que se tornou um favorito da vida: Sempre em Frente (C’mon C’mon), numa cena incrivelmente bonita do protagonista lendo para o sobrinho. muito longe no céu, o menino estrela observa a Terra maravilhado pelos oceanos, humanos e tudo que nos rodeia. a vontade do menino estrela de conhecer esse mundo é imensa… e para isso, terá que nascer como uma criança humana:
já mais no passado, volto para Obrigado a Todos!, de Isabel Minhós Martins. o livro é uma espécie de observação e gratidão às pessoas que estão ao nosso redor, a multidão de pessoas – sejam as mais próximas ou as mais distantes – que cruzam o nosso caminho e passam a habitar os nossos dias. mães e pais, irmãos e primos, tios e avós sempre estão lá para ensinar alguma coisa (para o bem e para o mal), bem como professores, amigos, um motorista do ônibus que vemos todas as manhãs ou um vendedor no mercadinho da esquina. com ilustrações solares e muito vivas, cada página e cada frase transbordam sensibilidade e, no meu caso, levantam lembranças que pareciam esquecidas até então. cada releitura é uma experiência gratificante.
Com o Tempo, também de Isabel Minhós Martins, foi lido praticamente junto com Obrigado a Todos!, num dia modorrento lá pelos meus 13 anos. a passagem do tempo sempre foi uma espécie de desespero para mim, a pressão de fazer tudo o que quero ao mesmo tempo é uma bagagem que me acompanha desde que me entendo por gente. quando me deparei com essa leitura que evidencia a passagem do tempo em acontecimentos banais, simples e inevitáveis do cotidiano, foi um afago, um suspiro profundo, gerando até uma certa esperança. revendo agora as ilustrações enquanto comparo com objetos, alimentos, animais e pessoas ao meu redor, me pego sorrindo diante cada pequeno movimento que com o passar de um segundo, muda.
encerro essa edição diferenciada com Cem, de Valerio Vidali e Heike Faller. Cem não está classificado exatamente como um livro infantil, mas que eu adoraria ler para muitas crianças, adultos ou idosos. através de pequenas frases e maravilhosas ilustrações, o livro propõe registrar tudo o que pode acontecer ao longo de uma vida. a cada página uma idade, de zero a cem anos. paixões, angústia, perdas, conquistas, felicidade, cansaço, amor e toda espécie de sentimentos que já nos arrebatou ou irá arrebatar. está tudo aqui da forma mais bonita que poderia estar e deixo alguns dos meus registros favoritos:
Eu amo literatura infantil. Há uns dois anos, reli "A Bolsa Amarela", que marcou a minha puberdade, e chorei como nunca. É um reencontro. Acho que há uma poesia muito única nesses livros <3
que demais! ❤️ literatura é um acalento