#51 - olhares sobre a paixão
indicações de última hora sobre as dores e delícias de se apaixonar
essa edição foi pensada de última hora. não sou grande adepta à datas comemorativas, não espero pelo dia dos namorados e nem costumo comemorar, mas me senti contagiada ao cruzar com tantas indicações alheias que amo e das quais sinto necessidade de também sair pregando por aí. isso aqui é na verdade um apanhadão, uma curadoria de livros, filmes e frases que me atravessam de alguma forma ao pensar sobre a maluquice de ser arrebatada por um outro, organizada em poucas horas na correria.
pensei em trazer os clássicos do cinema que sempre me lembro quando falamos de amor e paixão: Antes do Amanhecer, Um Dia, A Pior Pessoa do Mundo e tantas outras histórias de amor da qual sou apaixonada, e sei que muita gente também é. lembrei então de produções mais desconhecidas, aquelas que gostaria que o mundo todo conhecesse e se apaixonasse junto comigo.
antes de tudo, é preciso dizer o quanto essa coisa universal de perder a noção, o sono, a paz e tudo que a gente entende sobre a gente a partir de um outro, é para mim o ato mais fascinante, imbecil e curioso que pode existir, e que talvez por isso, eu seja um tanto obcecada pelo tema, e me debruce frequentemente em tantas narrativas.
já falei aos quatro cantos que Paixão Simples é uma obra divisora de águas em minha vida, então evitarei me repetir. vamos falar daqueles que ainda não esgotei tudo que tinha pra esgotar. dia desses, me recordei de um trecho certeiro do livro A Estrangeira, de Claudia Durastanti, que ilustra o estranhamento de uma pessoa que antes era aleatória sem qualquer interferência em nossa vida, torna-se de repente o sentido de tudo.
“Eu pensava todos os dias ser definida pela minha família, pelas minhas circunstâncias econômicas e geográficas, depois me dei conta de que o impacto mais profundo e determinante em mim foi causado por outra pessoa, com quem não tinha irmandade nem ligação consanguínea. Nunca estive na lua, nunca aprendi a nadar, não feri uma amiga em duelo, mas encontrei alguém. Um dia comecei uma conversa e não parei mais. Eu poderia vir de qualquer ponto da Terra, ser uma alienígena condenada à incompreensão, depois comecei a falar e alguém me ouviu, e isso definiu a forma que tomei, com o tempo criou minha expressão nas fotografias e o modo pelo qual pronuncio as palavras. Podemos conter uma raiz etimológica, mas quem a revela?”
filmes completamente apaixonantes que eu não me canso nem se assistir setenta e duas vezes
As Duas Faces da Felicidade, de Agnès Varda
Entre o Amor e a Paixão, de Sarah Polley
Companheiros, quase uma história de amor, de Peter Chan
Um Belo Verão, de Catherine Corsini
Suk Suk: Um Amor Em Segredo, de Ray Yeung
Folhas de Outono, de Aki Kaurismäki
o gostoso da paixão é que ela não é real, e o triste é que ela desinflama, e quando isso acontece, a gente fica com a realidade e não com a fantasia. e se a paixão desinflama, como chegamos a amar de fato alguém quando essa paixão arrebatadora acaba? a diferença entre amor e paixão já foi teorizada infinitas vezes por infinitos pensadores, mas de certa forma é ainda um mistério. a paixão em si, era (e é?) considerada uma patologia, uma doença, uma sensação que a gente torce pra não sentir e reza pra chegar, uma das maiores contradições que rende filmes, livros, série, jogos e movimenta toda a cadeia capitalista! Rosa Montero resume em poucas palavras no livro O Perigo de Estar Lúcida:
“A paixão é uma espécie de alienação, é sair de si mesma e assomar-se ao espaço sideral da sanidade, onde há cometas fulgurantes, mas também uma escuridão aterradora. A possibilidade de enlouquecer de amor é um lugar-comum na sabedoria popular, e certamente uma experiência pessoal bastante corriqueira. Eu mesma senti por vezes que uma paixão abrasadora me punha à beira de um ventoso penhasco, e não por medo de que o amado não me quisesse, mas pelo terror de descobrir que na verdade eu é que não queria o amado e tudo era, de novo, pura artimanha.”
lembrei também de um trecho super propício de Hilda Hilst que me apareceu há algumas semanas atrás: “Eu adoraria estar apaixonada sempre. A minha mãe dizia uma frase que eu nunca esqueci: 'Tens um inimigo, deseja-lhe uma paixão'. Eu não entendia o que ela queria dizer, mas agora eu entendo. A paixão é uma doença mesmo, uma doença total. E eu gostaria de, velha, ter uma paixão, de me apaixonar”. a mãe de Hilda sabia das coisas, e provavelmente foi tragada completamente por um outro, sentiu o ato desesperado de necessitar ou perder alguém, como todos nós em algum momento da vida.
é engraçado como por vezes pensamos a paixão como uma maldição total, um sentimento que devemos fugir e correr bem rápido para longe, mas que quando chega, torna-se irrefreável e irresistível até nos esgotar (para o bem e para o mal). deixo aqui uma sequência de trechos que me fizeram sorrir e sofrer, que gosto de ler e reler sempre que possível. são olhares de diferentes pessoas em diferentes partes do mundo, mas igualmente profundos para um mesmo sentimento:
Ela não se esquece de Andreas. Ainda sente muito sua falta. Às vezes, seus seios incham de desejo, todo o seu corpo formiga de ansiedade com a mera lembrança. No entanto, os traços de seu rosto já começaram a se apagar. Fecha os olhos e tenta retê-los, mas ainda assim se desvanecem. A sensação de perda vai se instalando, rapidamente, na memória. Uma noite, ela volta a sonhar com ele, mas é um homem mais alto, mais elegante. No sonho há uma placidez oleosa na qual ela mergulha para nadar. Dá braçadas com facilidade, contempla os raios de luz peneirados pela água, a tonalidade esverdeada de um leito de rio e o brilho prateado das pedras ao fundo. Quando acorda, pensa: não, aquele não era Andreas. (Um Amor, de Sara Mesa)
Pensando bem, o que eu queria era viver este domingo sem muita tristeza e não pensar em Luísa. No tempo em que Luísa fazia parte da minha vida, os domingos eram mais fáceis de viver. Eu fechava os olhos e pensava nela, e pensava também que no dia seguinte a veria. E à noite, nas noites de sábado, quando as mãos de minha mulher procuravam meu desejo, era só apagar a luz e imaginar que eu estava percorrendo o corpo de Luísa no corpo de minha mulher. Nunca amei tanto minha mulher como nos tempos em que eu amava Luísa. Por muito tempo ainda, após a sua partida, Luísa continuou habitando tão obsessivamente a minha vida que muitas vezes cheguei a pensar se a sua perda não teria se transformado naquele estímulo real de que eu precisava - não para viver, mas para morrer. Porque era insuportável a oposição entre uma vida morna e a memória de Luisa. Com Luísa, nada podia ser morno. (Luísa: quase uma História de Amor, de Maria Adelaide Amaral)
Atraíam-me seus olhos, sua voz, sua cintura, sua boca, suas mãos, seu riso, seu cansaço, sua timidez, seu pranto, sua franqueza, sua dor, sua confiança, sua ternura, seu sono, seu passo, seus suspiros. Mas nenhum desses traços bastava para me atrair compulsiva e totalmente. Cada atrativo se apoiava em outro. Ela me atraía como um todo, como uma soma insubstituível de atrativos, quiçá substituíveis. (A Trégua, de Mario Benedetti)
“Outras mulheres estariam sem homem naquela noite. Mas por muito tempo conservariam nos lábios o gosto dos beijos sinceros de despedida, nos seios a lembrança de uma carícia pura: mão leal e calorosa, quase amiga, que aflora a blusa na hora de ir embora. Em plena noite, sentindo o lugar vazio a seu lado, talvez acordassem, no entanto sabendo que de manhã, ao alvorecer, seus braços estreitariam os homens que retornaram, como antes ela fazia. Corpos famintos, mas sem inquietação, que se tranquilizarão alegremente à primeira luz do dia... Elisa apertou os braços em torno de si mesma, inclinou a cabeça sobre o peito. Noite solitária, dia seguinte sem esperança. Dia único, sem dia seguinte.” (A Mulher de Gilles, de Madeleine Bourdouxhe)
“Estou cansada de mim, estou cansada de mim sem você, eu sem você sou monótona, estou cansada. As tuas cartas não bastam pra minha Saudade, eu precisava ter você e eu tenho medo, e o que é que nós vamos fazer, não responda nada, o silêncio de antes da gente se encontrar era melhor, pelo menos era secreto e não secava almas e não almas, mas agora, esse silêncio e essa brancura de nós longe é insuportável, e eu começo a escrever, sem contar, dias passados dezembros janeiros fevereiros passados e antes e depois e agora é difícil, é difícil ser, é difícil te escrever, é difícil. Eu devia estar menos contraída, afinal o nosso amor é muito mais óbvio que eles pensam, muito menos óbvio que nós pensamos, o nosso amor é, o nosso amor está. Mas eu sou irracional obscura inóbvia burra faminta apaixonada. Irracional mais que tudo. E não vou acabar essa carta não.” (amor mais que maiúsculo, de Ana Cristina Cesar)
“(…) é simplesmente que quero estar com você e não com qualquer outra pessoa — Mas você ficará entediada se eu continuar dizendo isso, só que isso fica voltando e voltando até escorrer da minha caneta — Você se dá conta de que vou ter de esperar mais de quinze dias até poder ter notícias suas? Pobrezinha de mim. Não pensei nisso antes de partir, mas agora isso se agiganta de forma horrível. O que não pode acontecer com você no decorrer de quinze dias? Você pode ficar doente, se apaixonar, Deus sabe o quê.” (Virginia Woolf & Vita Sackville-West: Cartas de Amor)
Não se enganava a si mesma: era possível que aqueles momentos perfeitos passassem? Deixando-a no meio de um caminho desconhecido? Mas ela poderia sempre reter nas mãos um pouco do que agora conhecia, e então seria mais fácil viver não vivendo, mal vivendo. Mesmo que nunca mais fosse sentir a grave e suave força de existir e amar, como agora, daí em diante ela já sabia pelo que esperar, esperar a vida inteira se necessário, e se necessário jamais ter de novo o que esperava. Moveu-se de súbito na cama porque foi insuportável imaginar por um instante que talvez nunca mais se repetisse a sua profunda existência na Terra. Mas, para a sua alegria inesperada, percebeu que o amaria sempre. Depois que Ulisses fora dela, ser humana parecia-lhe agora a mais acertada forma de ser um animal vivo. E através do grande amor de Ulisses, ela entendeu enfim a espécie de beleza que tinha. Era uma beleza que nada e ninguém poderia alcançar para tomar, de tão alta, grande, funda e escura que era. Como se sua imagem se refletisse trêmula num açude de águas negras e translúcidas. (Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, de Clarice Lispector)
Gosto muito de uma epígrafe que tem no livro da Hilda que diz: "Paixão. Só dela cescre o fôlego de um rumo."
Que lindeza 💕 , receber isso hoje.