“Há manhãs em que me levanto, olho pela janela, vejo a cara do dia e me recuso terminantemente a recebê-lo. Há algo nele de nebuloso, de dissimulado, de mesquinho, de hipócrita que não me deixa aceitá-lo. São os dias credores, os que chegam para nos tirar algo e não para nos trazer algo.”
destaquei o trecho modorrento acima de Julio Ramón Ribeyro por servir como uma boa introdução para a edição mais deprê de hoje. o fato é que sentei para tentar escrever alguma coisa para essa edição desde a semana passada. nada saiu. ontem acordei modorrenta, triste e com um mau humor do cão. hoje também, e provavelmente amanhã. já tinha me conformado que não teria newsletter e tudo certo. de fato era a menor das minhas prioridades dentre as tarefas e a angústia que não tenho muito como controlar. lembrei então de alguns trechos que me pegaram profundamente, e pensei “por que não?”, considerando que, de qualquer forma, o que mais faço aqui é destacar trechos alheios.
há muitos temas dos quais quero desenvolver neste espaço, e que estão mais ou menos encaminhados inclusive, mas que me exigem uma boa dose de paciência e disposição para serem devidamente lapidados, e em meio ao caos do fim do mundo, não tem sido possível. para além das dores pessoais do cotidiano que todos sentimos, estamos compartilhando a dor coletiva pela catástrofe do Rio Grande do Sul, que não passará amanhã ou no mês que vem. a sensação de impotência, raiva, indignação, inconformidade e tristeza é presente quase o tempo todo a partir dos desdobramentos do desastre segue aumentando, e que afeta casas, animais, objetos, vidas, famílias, indivíduos, relações e mais um monte de coisas que ninguém além das pessoas que estão ali é capaz de mensurar. talvez nem mesmo elas.
no meio de todo o absurdo, consegui ver beleza em algumas coisas, por exemplo as conexões possíveis entre livros que cruzam nossa vida por acaso. Prosas Apátridas foi um livrinho que devorei encantada, e alguns dias depois, encontrei uma passagem dele no Literatura Infantil (recente lançamento de Zambra), que por sua vez, se relaciona diretamente com Linea Nigra, escrito por Jazmina Barrera, sua esposa, do qual li ano passado e mencionei por aqui. teve ainda Como um Romance, de Daniel Pennac entre as leituras atuais da semana, também sendo citado no Literatura Infantil. engraçado o quanto as aleatoriedades do universo algumas vezes são muito legais
normalmente me preocupo bastante se a edição está atrativa para que seja lida até o fim, penso e repenso, encurto parágrafos (e ainda assim segue longos, desculpem), mas dessa vez eu apenas quis registrar as passagens que tanto mexeram comigo em Prosas Apátridas como boa exagerada que precisa que o mundo se encante pelos mesmos encantos que eu. decidi não escolher pelas menores ou mais impactantes, ouvir o pensamento racional de que quanto mais trechos, menos atrativo porque ninguém vai simplesmente parar pra ler inúmeros trechos aleatórios seguidos sem contexto.
dessa vez realmente não me importa, pois só quero mesmo registrar em algum lugar da internet para consultar no futuro. espero que gostem das epifanias de Julio Ramón Ribeyro tanto quanto eu:
“As palavras que calamos eram as que deveríamos ter pronunciado. Os gestos que guardamos por pudor eram os que deveríamos ter feito. Os atos que nos pareceram triviais eram os que se esperava de nós. Outras pessoas os fizeram em nosso lugar. Paguemos agora as consequências.”
“Nossa vida depende às vezes de detalhes insignificantes. Por um defeito momentâneo no telefone não recebemos a ligação que esperávamos, por não recebê-la perdemos para sempre o contato com uma pessoa que nos interessava, ao perdê-lo nos privamos de uma relação capaz de nos transformar, ao sermos privados dela desaparece uma fonte de prazer, de inovação e de enriquecimento, ao desaparecer bloqueamos a única alternativa verdadeiramente fecunda que o mundo nos oferecia, ao bloquearmos voltamos ao ponto de partida: o de quem espera a ligação que nunca chegará.”
“Podemos memorizar muitas coisas, imagens, melodias, noções, argumentações ou poemas, mas há duas coisas que não podemos memorizar: a dor e o prazer. Podemos no máximo ter a lembrança dessas sensações, mas não as sensações da lembrança. Se fosse possível reviver o prazer proporcionado por uma mulher ou a dor causada por uma doença, nossa vida se tornaria impossível. No primeiro caso, se transformaria em uma repetição, no segundo, em uma tortura. Como somos imperfeitos, nossa memória é imperfeita e só nos restitui aquilo que não pode nos destruir.”
“Olhando o gato do restaurante: a maravilhosa elegância com que os animais expõem sua nudez. Faz tempo que constatei isso nos cachorros, nos cavalos. Não há nos animais nada de ridículo nem de desagradável. Se alguma vez suas posições e seus atos nos incomodam, é por sua semelhança com os atos ou posições humanas: por exemplo, quando os animais fazem amor.”
“Compreendi então que escrever, mais do que transmitir um conhecimento, é ter acesso a um conhecimento. O ato de escrever nos permite apreender uma realidade que até esse momento se apresentava de forma incompleta, velada, fugitiva ou caótica. Muitas coisas só são conhecidas ou compreendidas quando as escrevemos. Porque escrever é explorar o mundo e nós mesmos com um instrumento muito mais rigoroso que o pensamento invisível: o pensamento gráfico, visual, reversível, implacável dos signos do alfabeto.”
“Na realidade, não fazemos nada além de cruzar com as pessoas. Com algumas conversamos cinco minutos, com outras andamos até a próxima estação, com outras vivemos dois ou três anos, com outras moramos juntos dez ou vinte anos. Mas, no fundo, o que fazemos é só cruzar (o tempo não interessa), cruzar e sempre por acaso. E sempre acabamos nos separando.”
“Em suma, não adquirimos nada, nem paz, nem glória, nem dor, nem infelicidade. Cada instante nos transforma em outros não só porque acrescenta algo ao que somos, mas também porque determinará o que seremos. Só poderemos saber o que éramos quando nada mais puder nos afetar, quando — como dizia alguém - o quadro já estiver pendurado na parede.”
“Hoje, mais do que nunca, desejo de capitular, de pôr minha assinatura ao pé da página e me despedir de tudo. E ainda por cima sem motivo, pois foi um dia bastante memorável, realmente primaveril: sol, luz, ar quente, ausência de mal-estar, prazer de andar, respirar, observar. Mas entrelaçado com minhas ocupações e prazeres, em filigrana, uma voz, um chamado profundo, o retinir do sino que dobra por um morto: abandonar a partida na metade do jogo, mandar tudo para o diabo, bater a porta na cara do mundo. Por quê? Talvez porque cheguei ao máximo da minha elasticidade, já não posso dar nada melhor do que já dei, não sei o que fazer entre as pessoas e as coisas que me rodeiam, não tenho paciência para escrever mais uma linha sequer, nada desperta em mim uma curiosidade duradoura, não há probabilidade que retenha minha atenção.”
“Nunca consegui entender o mundo e vou-me embora dele levando uma imagem confusa. Outros puderam ou acharam que puderam montar o quebra-cabeça da realidade e conseguiram encontrar a figura escondida, mas eu vivi em meio às peças dispersas, sem saber onde colocá-las. Assim, viver foi para mim enfrentar-me com um jogo cujas regras fugiram de mim e, por consequência, não ter encontrado a solução para a adivinha. Por isso, o que escrevi foi uma tentativa de organizar a vida e tentar entendê-la, tentativa vã que culminou na elaboração de um inventário de enigmas. A culpa talvez seja da natureza da minha inteligência, que é uma inteligência dissociadora, habilidosa para expor problemas, mas incapaz de resolvê-los. Se alguma certeza adquiri, foi que não existem certezas.”
Na primeira citação, eu já sabia que gostaria do texto e dos demais recortes. Obrigada por compartilhar!
Gosto muito da sua escrita, e tem dias que a gente se levanta assim mesmo. E penso: "ainda bem que temos a literatura". E concordo quando diz que apenas cruzamos com as pessoas, no final sempre nos separamos. É isso. Continue escrevendo sempre!!