#47 - cinco encantos dos últimos dias
Gloria Anzaldúa, Correio IMS, Tove Ditlevsen, minha biblioteca e mais.
1. colagens da Juliana Jorge
2. os ensaios de Gloria Anzaldúa
A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios estava me esperando há tempos. me lembro de durante um evento literário, lerem o trecho que estabelece um contraponto direto com Um Quarto Só Seu, de Virginia Woolf. grande parte das ‘mestizas’ e ‘chicanas’ não se enxergam nessa realidade utópica e limitante de um quarto só seu, muito menos a autonomia financeira ou a privacidade que Woolf diz ser essencial para o exercício da escrita, mas enxergam uma chance de organizar o mundo, de construir e habitar um novo mundo possível e menos hostil para seus corpos:
“Esqueça o teto todo seu - escreva na cozinha, se tranque no banheiro. Escreva no ônibus ou na fila da assistência social, no trabalho ou entre as refeições, entre o sono e a caminhada. Eu escrevo sentada na privada. Nada de trechos longos na máquina de escrever, a não ser que você seja abastada ou tenha um mecenas - talvez você nem tenha uma máquina de escrever. Enquanto varre o chão ou lava as roupas, ouça a cantoria das palavras no seu corpo. Quando você tá deprimida, nervosa, machucada, quando a compaixão e o amor te dominam. Quando você não pode fazer nada além de escrever.”
ao mergulhar no primeiro ensaio, me vi completamente dominada por Gloria e sua necessidade de escrita, sendo a escrita para ela, além de um dispositivo de resistência e sobrevivência, também uma forma de sentir-se parte de um mundo que não compreendia: “Durante todo o tempo em que crescia eu sentia que não era desse planeta. Um alien de outro planeta - que tinha sido largada no colo da minha mãe. Mas com qual propósito?”. falando diretamente para mulheres do terceiro mundo, a autora desafia os cânones educacionais, literários, culturais e políticos. entre ensaios interligados por discussões sobre raça, linguagem, fronteira, sexualidade, gênero, classe e escrita, há também experiências autobiográficas reveladas, que proporcionam um encontro inesquecível com sua postura insubmissa, relembrando a revolta necessária para seguirmos vivas e atentas. acadêmica, revolucionária, poeta assumidamente lésbica, Gloria Anzaldúa foi precursora do feminismo interseccional, de estudos sobre gênero, sexualidade e política queer, sempre em sintonia com o pensamento decolonial, contestando papéis sociais e apontando os múltiplos efeitos das violências em corpos dissidentes, além de esclarecer a diferença dos percalços nos caminhos das mulheres de cor em relação aos obstáculos impostos à mulheres brancas. a escrita permeia quase todos os ensaios, estabelecida como ferramenta de poder que por muito tempo, foi (e é) estrategicamente negada às mulheres: “Escrever é perigoso porque temos medo do que a escrita revela: os medos, as raivas, as forças de uma mulher sob opressão tripla ou quádrupla. Mesmo assim, é na escrita mesma que nossa sobrevivência se encontra, porque uma mulher que escreve tem poder. E uma mulher com poder é temida”. a irreverência de Gloria, bem como sua pulsão e energia em movimentar todo o sistema patriarcal e racista através da arte e da escuta, é sentida em cada página dessa preciosa reunião de textos que é A Vulva é uma Ferida Aberta e Outros Ensaios.
Quem nos deu permissão pra encenar o ato da escrita? Por que a escrita parece tão desnatural pra mim? Vou fazer qualquer coisa pra adiá-la - esvaziar a lixeira, atender o telefone. A voz recorrente aqui dentro: Quem sou eu, uma pobre chicanita da roça, pra pensar que poderia escrever? Como ousei sequer considerar me tornar uma escritora enquanto me agachava nos campos de tomate, curvando, curvando sob o sol quente, mãos grossas e calejadas, não feitas pra segurar a pena, entorpecida num estupor animal com o calor. Quão difícil é pra nós pensar que nós podemos escolher nos tornar escritoras, ainda mais sentir e acreditar que podemos. O que temos pra contribuir, pra dar? Nossas próprias expectativas nos condicionam. Nossa classe, nossa cultura, o homem branco, não estão todos nos dizendo que escrever não é pra mulheres como nós?”
3. Correio IMS
minha nova obsessão se chama Correio IMS, que reúne arquivos de cartas de personalidades culturais de diversos anos, temas e locais. já contei aqui em algum momento minha paixão por papel e, naturalmente, por cartas. escrever e receber cartas sempre foi uma das minhas maiores alegrias, chegando a pedir para as pessoas que escrevessem para mim. até hoje mantenho uma caixa cheinha delas (inclusive de amigas da quinta série, ex namorados, família ou pessoas que tiveram passagens breves pelo meu caminho). passear por algumas dessas cartas foram momentos deliciosos em que me senti teletransportada para uma época, um sentimento ou um momento da vida do outro. recomendo fortemente que vocês também experimentem esse teletransporte :)
4. a construção da minha própria biblioteca
a leitura entrou na minha vida completamente por acaso: um quartinho abandonado no fundo da casa com objetos esquecidos que só estavam lá por não terem pra onde ir. dentre tantos objetos, dezenas de livros velhos que chegavam de formas aleatórias. um dia, de saco cheio do tédio, passeei pelas capas e títulos até me deparar com A Marca de Uma Lágrima, de Pedro Bandeira. a partir daí, encontrei um conforto gigantesco no ato de me desligar da solidão que sentia em meio a uma casa lotada de gente. a obsessão pelos livros me levou a frequentar uma biblioteca num colégio de elite do bairro que aceitava leitores de bairro, criar um blog na internet com a intenção de receber exemplares pela impossibilidade de comprar. passado um tempo, ingressei como jovem aprendiz na Livraria Cultura, e muito contente com um salário de 750 pila adquiri minha primeira estante mequetrefe das lojas americanas pra enfiar num espaço estreito do quarto que dividia com mais duas pessoas (contra todos os protestos do resto dos moradores que não viam sentido em ocupar tanto espaço com livros). cerca de 11 anos depois, estou no meu próprio canto com uma estante que jamais imaginei me ser possível, num apartamento que também imaginei permanecer para sempre no inalcançável. olhar para essa trajetória me causa arrepios e sorrisos. que bom que insisti até o dia de hoje e aceitei a grande aventura que é ser tomada por palavras.
5. Trilogia de Copenhagen (Infância, Juventude e Dependência), de Tove Ditlevsen
há alguns dias finalizei essa leitura que coincidentemente também carrega o ato da escrita como impulso para a sobrevivência. nesse caso, retratando infância pobre da autora num bairro operário da Dinamarca, passando pela juventude cheia de desejos e sonhos não realizados, até chegar à vida adulta, à relacionamentos conturbados e à dependência química que a levaria à morte, aos 58 anos. Tove Ditlevsen viveu uma vida comum, e naturalmente, grande parte dos capítulos são dominados por acontecimentos absolutamente cotidianos, mas profundamente melancólicos e sufocantes, como a infância pobre, o trabalho desde muito nova como faxineira em escritórios, os relacionamentos fracassados, a carência afetiva em meio a uma família fria, principalmente a mãe que lhe gerava a sensação de abandono constante. talvez justamente por abordar resquícios de memória do cotidiano de uma vida simples e aparentemente irrelevante para muita gente, Trilogia de Copenhagen tenha se tornado um grande favorito por aqui.
muito me instiga obras de autoficção pela coragem em revelar falhas e fragilidades, egoísmos, dores, amores e incoerências. Tove oferece essa coragem de forma extremamente palpável, sem qualquer pudor ou pedido de indulgência. a crueza e honestidade de seu relato, me causaram angústia tremenda por vários trechos, e ao mesmo tempo um sentimento profundo de compreensão e identificação com aquela figura solitária e inadequada, que enxergava na escrita a lucidez de si e do mundo ao seu redor. publicado na década de 50, a narrativa fica ainda mais impressionante pelos temas que atravessam a jornada de Tove: aborto, iniciação sexual, divórcio, carreira feminina, questionamentos acerca das limitações da mulher no campo da escrita e no mundo como um todo.
atormentada por uma forte angústia desde a infância, Tove luta contra a ideia de que “uma menina não pode ser poeta” reforçada pelo próprio pai e todo o restante da família, enquanto escreve seus versos em segredo. entre essas e outras experiências traumáticas de silenciamento, uma atmosfera ameaçadora e inóspita prevalece no seu universo infantil e lhe acompanha durante a vida, enquanto anseia por outro tipo de realidade, sempre com uma espécie de expectativa misturada com aparente indiferença emocional numa dificuldade de se conectar verdadeiramente com qualquer ser humano, agarrando oportunidades nada ideais para que sua escrita possa ser vista e valorizada, mesmo contribua para a extrema solidão. enfim, uma experiência dilacerante e dura que me encantou pela honestidade brutal.
extra: vai ter Toni Morrison na Escrevedeira
a queridíssima Maria Carolina Casati, que tenho o prazer de chamar de amiga, estará ministrando um curso online sobre algumas das obras de Toni Morrison. não vou perder por nada e inclusive já separei meu exemplar de Amada para me preparar devidamente, enquanto Sula e O Olho Mais Azul já foram lidos e favoritados por aqui ❤️🔥
O olho encheu de lágrima e orgulho aqui: "cerca de 11 anos depois, estou no meu próprio canto com uma estante que jamais imaginei me ser possível, num apartamento que também imaginei permanecer para sempre no inalcançável".
que orgulho que senti vendo essa estante! saudades, minha amiga!
ps: a dica das cartas do Correio IMS, sem palavras <3