#44 - ainda dá tempo de falar dos favoritos do Oscar?
Pobres Criaturas, Dias Perfeitos, Anatomia de uma Queda e Vidas Passadas
há semanas que tento trazer algumas poucas palavras (se é que eu consigo ser breve kkk) sobre os favoritos dessa temporada do Oscar, e finalmente aconteceu!!!! espero que ainda esteja em tempo e que aproveitem cada uma das dicas, pois esses filme ganharam completamente meu coração.
Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos
desafiador escolher poucas palavras para definir um filme que me atravessou em muitos sentidos. me lembro de estar na cadeira do cinema, com o desejo de que aquilo não chegasse ao fim, surpreendida e tragada pelas cores saturadas, pelo exagero, pelo conto de fadas que se mistura ao surrealismo e ao fantástico, tudo tornando uma experiência completamente imersiva e inédita, ainda que o tema “libertação feminina” esteja tão manjado. me impressionei ainda com a jogada de cores representativa: o preto e branco que ilustra a prisão da personagem apartada do mundo e o colorido cada vez mais intenso nas cenas em que Bella é livre para explorar a realidade.
Bella Baxter é um corpo feminino adulto ocupado por um cérebro infantil, fruto de uma experiência maluca do cientista que se torna sua figura de pai. Bella reproduz o caminhar e os trejeitos de uma criança em desenvolvimento, bem como a linguagem e comportamento infantilizado, com toda sua ingenuidade, e que, indiferente a tudo (moralidade/comportamentos esperados/regras sociais), vive com intensidade cada emoção, principalmente o prazer sexual, tão eufórico, instintivo e natural, motivando grande parte de suas ações, desejos e impulsos. Bella é uma figura que causa desconcerto e encanto, e que depois de muita negação do próprio criador, finalmente é autorizada a ver e viver experiências pelo mundo com o próprio corpo na era vitoriana (em paisagens um tanto futuristas), numa jornada de autodescoberta, sendo ela, até então, estrategicamente limitada e supostamente livre das inibições que criamos por anos de condicionamento social desde que nascemos. a masturbação, o sexo, a comida, a bebida, a conversa com outras pessoas, o prazer da descoberta e das primeiras experiências… absolutamente tudo é testado além do limite por Bella, que parece não querer perder nada do que o mundo pode lhe oferecer.
nessa jornada, há espaço para as lamúrias do mundo, para experimentar a necessidade de controle dos homens sobre corpos femininos, para a busca de um sentido à própria existência confusa e inadequada, enquanto tenta compreender o funcionamento do mundo em todas as suas contradições, misérias e injustiças, sustentada pelo espírito curioso e questionador, que se apaixona pela vida na mesma medida em que se frustra. atraída inicialmente pela ideia de vivenciar o sexo intensamente, Bella logo descobre os poderes da medicina, da política, da filosofia, o funcionamento do sistema e consequentemente, do ser humano.
Pobres Criaturas é estranho, provocativo, desconfortável, ousado, bem humorado e principalmente irreverente ao apresentar um mundo como o nosso, em que personagens são submetidos a regras absurdas e convenções sociais que seguimos sem ao menos questionarmos, até Bella Baxter aparecer para driblar todas as tentativas de controle e buscar o próprio caminho e liberdade em meio a tudo isso, descobrindo o poder de ser sozinha e livre.
outros filmes de Yorgos Lanthimos que merecem atenção e são marcados por forte desconforto:
Dias Perfeitos, de Wim Wenders
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a maior parte das cenas deste filme nos recordam a imensidão em olhar para o céu, para o chão ou para frente diante do espaço de tempo que se abre no intervalo entre uma atividade, que minimamente entediante, já nos leva instintivamente a olhar para a tela de um celular. Dias Perfeitos me fez questionar a última vez em que estive fora de casa e olhei ao meu redor atenciosamente, reconhecendo a beleza no ordinário, em que de fato observei as pessoas ou em que me senti observada, já que normalmente estamos todos com um celular enquanto aguardamos ao metrô, uma fila, enquanto caminhamos, comemos ou pensamos.
Hirayama, o protagonista mais cativante que tive o prazer de assistir, diante do mínimo espaço de tempo, escolhe olhar para as folhas ou troncos das árvores. pode inclusive, ser encarado como um sujeito alienado da realidade quando falam sobre spotify e ele não faz ideia do que é, seguindo seu fiel toca fitas no carro, quando não possui um celular ou quando não estabelece conexões fortes com alguém. isto é, um ser alheio a tudo que o cerca, talvez como uma estratégia para fugir do próprio passado (que o telespectador pouco acessa), da morte inevitável ou da solidão, que está sempre ali, mas que pode ser ignorada através da alienação.
é comum associar pessoas solitárias por um viés dramático, tal como fazem muitos filmes por aí, a solidão como consequência de um acontecimento traumático, mas Dias Perfeitos vai por um caminho inédito: a beleza que há na solidão e o olhar atento para o mundo que nasce dela, explorando as muitas formas de ser sozinho que existem em cada um de nós. Hirayama talvez seja o menos solitário entre todas as pessoas que passam pela câmera da atenta fotografia de Dias Perfeitos, é o que oferece escuta, atenção plena e o olhar que está em falta na contemporaneidade hiper conectada. um homem de poucas palavras, apreciador do silêncio (substituído apenas pelas música nostálgicas em seu caminho para o trabalho). os Dias Perfeitos do qual o título do filme se refere, são aqueles que todo mundo já passou em algum momento: dias simples e tranquilos da rotina, e ainda que monótonos, carregam uma sensação gostosa de pertencimento. é no vento balançando as folhas das árvores e no ato de fotografá-las que Hirayama encontra seus dias perfeitos, no barulho da vizinha varrendo a calçada que o desperta todas as manhãs, no olhar para o tempo quando saí de casa, no livro que lê ao fim do dia em sua cama, na ida à livraria do bairro, na comida quente e água gelada do restaurante que gosta, na natureza que cultiva através das plantas em seu pequeno apartamento e tantos outros detalhes no dia a dia entre idas para casa e limpezas minuciosas que efetua nos banheiros públicos da cidade de Tóquio. através deste personagem detalhista, que fala muito mais através de gestos e atitudes do que pelas palavras, o filme reflete também sobre memória, nostalgia e passagem do tempo, acompanhada de uma trilha sonora contagiante e nostálgica demais, fechando com uma cena final que dispensa qualquer tipo de comentário (pois PERFEITA), e eu não ousaria tentar descrevê-la ou resumi-lá em palavras que jamais seriam o suficiente!
Anatomia de uma Queda, de Justine Triet
Sandra é uma escritora alemã que vive num charmoso chalé nos Alpes Franceses com o marido Samuel e o filho Daniel, que perdeu parte da visão após um acidente (além do cachorro que merece destaque pela atuação, fofura e parceria absurda). uma vida aparentemente pacata e tranquila que muda drasticamente quando Daniel encontra o pai morto na neve. a janela do sótão aberta indica que a causa da morte foi a queda, mas a queda acidental ou proposital? diferente de Dom Casmurro com a famosa pergunta “traiu não traiu?” aqui é “matou ou não matou?”.
o tribunal é um dos principais cenários do filme, em que a acusação sustenta o possível assassinato de Sandra contra o marido, apelando muitas vezes para a moralidade e até mesmo para os livros ficcionais escritos por Sandra. o que era para ser um julgamento sobre a morte de Samuel, torna-se uma dolorosa dissecações das relações familiares, especificamente, do laço entre o casal que há anos enfrentava uma dinâmica baseada em infidelidade e ressentimentos acerca da falta de confiança e capacidade, um rancor profundo que será usado como evidências pelo promotor. Sandra ser uma mulher bissexual e que assumidamente traiu o marido, torna-se um dos muitos indicativos de seu caráter duvidoso do ponto de vista moral. a quebra de expectativas do marido, bem como a autossabotagem e a vida que queria ter versus a vida que realmente teve, são os pontos mais instigantes dessa história. refletindo um papel incomum ocupado por um homem dentro do casamento, Samuel é uma alma torturada pelo insucesso da carreira profissional em prol da dedicação na criação do filho e a sobrecarga decorrente das tarefas domésticas que, na visão dele, são desproporcionais. tarefas normalmente atribuídas à esposa, que neste caso, alcançou o sucesso com sua escrita, mas supostamente culpada por todos os fracassos do marido (e por que não pela morte dele também?).
“Você reclama de uma vida que você escolheu. Você não é uma vítima. Não mesmo. A sua generosidade esconde algo sujo e maldoso. Você é incapaz de encarar as suas ambições e me ressente por isso. Mas eu não te coloquei onde você está, não tenho nada a ver com isso. Você não está se sacrificando como você diz. Você escolheu ficar à margem porque você tem medo. Porque seu orgulho faz sua cabeça explodir antes que você consiga conceber uma ideia qualquer. E aos 40, você precisa de alguém pra culpar. E você é o culpado. Você fica paralisado pelos seus próprios padrões e medo do fracasso. Essa é a verdade.”
Anatomia de uma Queda é também sobre a união entre duas pessoas que se amaram a ponto de jurar a eternidade, mas como grande parte das uniões, é consumida pela culpa, pela tristeza e arrependimentos. as conclusões dúbias que o telespectador é conduzido a supor, dependerá da subjetividade e interpretação de cada um, sendo também uma das grandes sacadas da direção do filme: em meio a tantas narrativas, como se chega na verdade?
Vidas Passadas, de Celine Song
quantos “e se…” passam pela nossa cabeça ao longo da vida? alguns até eternos. em parte, vivemos à sombra do que poderíamos ter sido, vivido ou nos tornado. Vidas Passadas é justamente sobre a beleza e a tristeza do sim, do não e do nunca, sobre as tantas vidas que vivemos em uma e de tudo aquilo que não acontece, lançando luz ao conceito de “In-Yun” tão presente na estória: a união das pessoas ao longo de suas várias reencarnações, sugerindo que se há um contato mínimo nessa vida, mesmo que um simples tocar de roupas na rua, houve algo entre aquelas duas pessoas numa encarnação passada, e assim, as almas se tornam destinadas a encontrar-se vez após vez, seja como amigos, estranhos, família ou amantes.
Nora e Hae Sung se separam ainda adolescentes quando a família dela decide emigrar para o Canadá. vivem vidas paralelas até se reencontrarem e perderem contato novamente. mais de uma década depois, surge a oportunidade de um verdadeiro reencontro, Hae Sung está vindo para Nova York, onde Nora e seu marido Arthur, o esperam. a partir daí, quando ambos podem vislumbrar tudo que poderiam ter sido, conhecemos a fundo essas pessoas que olham constantemente para o passado e que estão em busca de suas próprias raízes, evidenciando os limites emocionais e geográficos (seja de Nora com Hae Sung ou de Nora com Arthur). em determinado momento do filme, a mãe de Nora pontua sabiamente: “Se você deixa algo para trás, você também ganha algo novo” e essa é uma frase que define perfeitamente a dinâmica de qualquer vida, principalmente a da protagonista, que com a passagem do tempo, atravessa mudanças essenciais que formam sua identidade: evolução, conquistas e realizações, mas também faltas, o que era pra ser e não foi, o que demorou tanto que passou de vez e, enfim, as escolhas e renúncias que assumimos e precisamos bancar ao longo da vida.
muito além da ideia de “com quem ela vai terminar”, o filme se propõe mostrar quem Nora é, e como cada homem representa uma faceta de sua personalidade, cada um deles desperta o sentimento de afeto, conforto e casa de formas opostas e igualmente válidas. justamente por fugir de soluções óbvias, sentimentos manjados e maniqueístas, Vidas Passadas é uma obra valiosíssima, honesta e absolutamente palpável, se encerrando com uma cena que, para mim, carrega o peso do beijo mais apaixonado nunca dado na história do cinema junto à troca de olhares entre os personagens, consumidos pelo não dito, pelo que poderia ser, pelo que talvez um dia será… enfim, me arrepiei todinha.
encerro com uma charge da série ‘Novo Anormal’ da @revistatrip que me deparei uns dias atrás e achei certeira:
Dias perfeitos me irritou e ainda não encontrei ninguem que tenha se sentido assim, hehe. Apesar de cenas belíssimas, trilha sonora impecável, nao pude me furtar de pensar em mil coisas, a começar pelo trabalho que ele exerce e a romantização que o filme traz de uma função tão ferrada como essa da limpeza - condição de trabalho normalmente insalubre, salários ruins, etc. Mas não vou ser chata e estragar a beleza do simples (que tem sim momentos muito reais no filme, como os almoços no parque). Os outros filmes eu adorei, anatomia é meu preferido, seguido de vidas passadas. Beijo
Análises perfeitas, em Anatomia de uma Queda achei demais a forma com que eles exploraram as nuances da relação e o trabalho minucioso do promotor... ao mesmo tempo foi muito angustiante ver o filho sofrendo em meio a tudo aquilo e o peso que recai sobre ele :( também AMEI Dias Perfeitos evidenciando a beleza do simples 🍃 falta ver Pobres Criaturas que tô super curiosa.