#43 - a casa na rua mango, Susan Sontag, Silvina Ocampo e outras aleatoriedades
começo destacando o imenso prazer que tive de conhecer duas grandes autoras pelo olhar de duas outras grandes autoras. Mariana Enriquez traça um retrato de Silvina Ocampo em A irmã menor, enquanto Sigrid Nunez registra suas memórias com Susan Sontang em Sempre Susan.
até então, sabia pouco ou quase nada sobre Silvina Ocampo e Susan Sontag, que sempre me despertaram curiosidade pelo legado que deixaram. além de conhecê-las quase intimamente, me agradou esse movimento inédito de enxergar mais sobre uma figura sem ter lido suas obras antes, me encantando com particularidades que vão além da ficção e da escrita. obras belíssimas e grandiosas por si só, entregam ainda fofocas acerca das rodas de artistas, escritores e produções de suas respectivas épocas. enfim, pratos completos!
Sigrid Nunez conta sobre o período em que conviveu com Susan, sendo parte deste período em envolvimento romântico com o filho dela. a partir dessa convivência tão próxima, a autora traça um perfil bastante humano, honesto e tocante, em que é possível identificar as complexidades e qualidades de Susan, com seu temperamento bem particular, contagiante da forma mais positiva que se pode imaginar, mas também obscuro e incômodo. acima de tudo, é possível sentir a admiração de Sigrid pela imponente e irreverente intelectual que foi Susan Sontag. e depois dessa imersão deliciosa, não poderia deixar de registrar alguns fatos, opiniões e curiosidades sobre Susan a partir do olhar de Sigrid:
“Ela se autodenominava melancólica, mas essa é uma palavra muito fraca e passiva para o que a afligia. Sua tristeza estava repleta da raiva mais sombria. Reagia chutando e gritando. Eles não a pegariam! Quando estava infeliz com o mundo, ela atacava; queria machucar alguém. Em seu círculo íntimo, sempre tinha pelo menos uma ou um saco de pancadas, e ela batia, e batia, e batia.”
“Apesar de todo o orgulho da maternidade e de todos os lamentos por não ter tido mais filhos, ela não era maternal. Na realidade, eu achava quase impossível imaginá-la amamentando ou cuidando de um bebê ou de uma criança pequena. Eu poderia imagina-la mais facilmente cavando valas, dançando break ou ordenhando uma vaca. Desde o momento em que soube que estava grávida até o dia em que entrou em trabalho de parto, ela nunca consultou um médico. ‘Eu não sabia que deveria.’”
“Ela me disse: ‘Eis a grande diferença entre nós duas. Você usa maquiagem e se veste para chamar atenção e ajudar as pessoas a te considerarem atraente. Já eu não faço nada para atrair atenção para a minha aparência. Se alguém desejar, pode se aproximar e talvez descobrir que sou atraente. Mas não farei nada para ajudá-lo.’ A minha maneira era a feminina típica, a dela, a da maioria dos homens.”
“Ela simplesmente não suportava ficar sozinha. Entre as muitas coisas que sempre quis fazer, não havia nenhuma que escolheria fazer sozinha. Não havia nenhuma experiência, no que dizia respeito a ela, que pudesse ser aprimorada por ser realizada sozinha. Para ela, a necessidade de fazer certas coisas, como comer, sem companhia era como um castigo. Preferia sair para jantar com alguém de quem não gostava muito a comer sozinha.”
“Disse: ‘Resista à tentação de pensar em si mesma como vítima’. (Ela não tinha paciência com fracas que não podiam cuidar de si mesmas; aquelas sem armadura traziam à tona a agressividade dela.) Acreditava que as mulheres eram criadas para serem masoquistas e que isso também era algo contra o qual uma mulher deveria lutar. Embora se considerasse totalmente diferente da maioria das mulheres, queixava-se do que via como suas próprias tendências masoquistas. ‘Como meu jeito grotesco de desejar loucamente pessoas que não me querem.’”
“Ela em geral desprezava as pessoas que não faziam o que queriam verdadeiramente fazer. Acreditava que a maioria das pessoas, a não ser que fossem muito pobres, eram responsáveis pela vida que levavam, e, para ela, segurança em vez de liberdade era uma escolha deplorável. Era servil.”
“Disse ‘as pessoas são ovelhas. Se uma diz que algo é bom, a próxima diz que é bom, e assim por diante. E, se eu digo que algo é bom, todo mundo diz que é bom. A certa altura, as pessoas nem olhavam mais para a obra; simplesmente tomavam suas decisões em relação à obra tendo como base o que já fora dito sobre ela.’”
“Era naturalmente didática e moralista; queria ser uma influência, um modelo, alguém exemplar. Queria aperfeiçoar a mente das pessoas, refinar o gosto delas, contar coisas que não sabiam (em alguns casos, coisas que nem queriam saber, mas que ela insistia que, oras, deveriam). Mas, se educar pessoas era uma obrigação, também era bastante divertido. (…) Ela queria que suas paixões fossem compartilhadas por todos, e reagir com igual intensidade a qualquer obra que amasse era fornecer a ela um de seus maiores prazeres.”
“Disse que era um erro se importar demais se os outros gostavam ou não de você. Ser desprezado em certas circunstâncias, ou por certas pessoas, podia constituir um excelente elogio.”
“dificilmente levantava o ânimo ser lembrada de relacionamentos que começaram com romance e paixão, mas estavam mortos. Susan estava sozinha e não queria ficar sozinha. Queria estar apaixonada. (Ela acreditava no amor e, quando se apaixonava, se apaixonava pra valer, e em seus sentimentos havia um elemento de terror.) Ela queria se casar. O fato de nenhum relacionamento dela ter durado, não importava quão profunda e verdadeiramente ela se interessasse pelo outro, a atormentaria por toda a vida.”
já Silvina Ocampo, conhecida pela literatura cheias de crueldades e estranhezas, é retratada pelo cuidadoso pelo olhar de Mariana Enriquez, que nos apresenta partes da singularidade, excentricidades e peculiaridades da vida de Silvina, que se refletiam em suas narrativas: a difícil relação com a irmã Victoria Ocampo, a forte amizade com Jorge Luis Borges, o casamento conturbado com Adolfo Bioy Casares, a constante sensação de inadequação e inúmeros comportamentos que levaram a construção de sua imagem misteriosa e reservada. através de uma longa pesquisa, Mariana Enriquez evidencia o gosto de Silvina pela experimentação e sua pulsão em explorar situações inóspitas, criando histórias que envolviam crueldades e assassinatos, sem qualquer filtro: “Algumas das constantes na narrativa de Silvina Ocampo já aparecem: a guerra entre adultos e crianças, as casas - há uma verdadeira obsessão pelas casas em sua obra, a casa como último refúgio e também como o lugar que, quando se transforma em inimigo, é o mais perigoso de todos; o gosto pelo detalhe e aquela crueldade que costumavam atribuir a ela com furiosa insistência e que chamava sua atenção, talvez porque não lhe parecesse ‘crueldade’, talvez porque lhe parecesse um jogo, um exagero”.
relatos de diferentes pessoas que passaram pela vida da autora também ganham espaço neste perfil biográfico: “Sempre me pareceu algo de ordem espiritual, além de fisiológico. Silvina dizia uma coisa mas pensava o contrário do que estava te dizendo; o tempo inteiro oscilava, era um pensamento muito paradoxal e contraditório. Ia transformando suas opiniões lentamente até chegar ao oposto, numa espécie de metamorfose que ia operando rapidamente no pensamento. Quando chegava ao fim, tudo o que ela havia dito parecia a coisa mais normal, dois opostos que ela tinha conseguido unir. Silvina não acreditava na permanência das coisas e da identidade. Da sua própria, em primeiro lugar, e suponho que dos outros tampouco. Não era louca: era seu modo espontâneo de sentir, pensar e ver o mundo.”
Silvina Ocampo seguiu escrevendo durante décadas, quase até o fim da vida, com a dureza do mal de Alzheimer: “Silvina escrevia o tempo todo. Há poemas que têm umas dezoito versões. Escrevia sentada com um caderno sobre os joelhos dobrados. Em Palermo, às vezes não me atrevia a chegar perto porque percebia que ela estava fazendo versões orais dos poemas. Andava por aí como um fantasma, percorria sempre os mesmos lugares. Dava voltas e mais voltas”. quando morreu aos 90 anos, ganhou um espaço no jazigo familiar em que constam apenas os nomes das irmãs Victoria e Angélica. conhecer mais sobre a personalidade dessa mulher cativante e obscura a partir do olhar de terceiros foi uma experiência que me instigou a ler cada palavras que escreveu. inteligente e perversa, Silvina era dona de uma imaginação selvagem, e por isso, considerada uma das melhores contistas da América Latina, mesmo que tão ofuscada em vida.
A Casa na Rua Mango também apareceu entre as últimas leituras por aqui, sendo uma releitura. Esperanza tem um nome mexicano, origens mexicanas, aparência mexicana, mas nascida nos Estados Unidos, especificamente num decadente bairro de Chicago. tal como a própria Sandra Cisneros, é filha de mexicanos morando nos Estados Unidos. através de fragmentos do cotidiano (podem ser encarados como memórias ou contos), acompanhamos a história de mulheres do bairro (emocionantes, tristes ou violentas) e de Esperanza, que dentre tantas características marcantes, busca uma amizade que entenda todas as suas piadas sem precisar explicar, passa por intrigas bobas e típica da adolescência, morre de medo de também ocupar o lugar na janela das mulheres da sua família, sente-se parte e não-parte do lugar onde vive e ainda descobre a estranheza de ser menina/mulher com suas “particularidades” num mundo predominantemente masculino.
a longa introdução do livro, nomeada “Uma casa toda minha”, escancara não só os sonhos da autora, mas os caminhos que a levaram até à escrita do livro, bem como sua esperança por uma arte democrática que possa ser sentida em todo e qualquer lugar ou a busca pelo seu espaço e a luta dos pais que almejavam para a filha uma vida diferente da deles. seja essa introdução que por si só já vale pelo livro todo ou pelos fragmentos do livro, Esperanza é uma voz da própria Sandra Cisneros, que reivindica sua casa, sua família, seu nome, suas origens e cultura, bem como o irreverência de não repetir determinados ciclos que pareciam reservados à mulheres latinas.
“Ela olhou pela janela a vida toda, do jeito que tantas mulheres apoiam suas tristezas em um cotovelo. Eu fico pensando se ela fez o melhor com o que recebeu ou se ela lamentava por não ter conseguido ser todas as coisas que queria ser. Esperanza. Eu herdei o nome dela, mas eu não quero herdar seu lugar na janela.”
talvez a releitura tenha me chamado justamente pelo momento propício de estar construindo e conquistando meu próprio espaço. o desejo de uma casa aparece como motivação nessa história sobre identidade e pertencimento entre uma cultura estadunidense e mexicana que se misturam.“Não um flat. Não um apartamento de fundos. Não a casa de um homem. Não a de um pai. Uma casa toda minha. Com a minha varanda e o meu travesseiro, minhas lindas petúnias roxas. Meus livros e minhas histórias. Meus dois sapatos esperando ao lado da cama. Ninguém para ameaçar com um pedaço de pau. As tralhas de ninguém para recolher. Apenas uma casa silenciosa como a neve, um espaço para eu mesma ir, limpa como papel antes do poema.” ou “Eu ponho no papel e então o fantasma não dói tanto. Eu anoto e a Mango diz adeus às vezes. Ela não me agarra com os dois braços. Ela me liberta. Um dia eu vou arrumar minhas malas de livros e papéis. Um dia eu vou dar adeus à Mango. Eu sou forte demais para que ela me prenda aqui para sempre. Um dia eu vou embora. Amigos e vizinhos dirão: O que aconteceu com aquela Esperanza? Para onde ela foi com todos aqueles livros e papéis? Por que ela marchou para tão longe? Eles não saberão que eu fui embora para voltar. Pelos que eu deixei para trás. Pelos que não podem sair.” são passagens que evidenciam a esperança de Esperanza.
“Sally, você ás vezes deseja que não tivesse que ir para casa? Você deseja que seus pés um dia andassem e levassem você para bem longe da Rua Mango, bem longe e talvez seus pés parassem na frente de uma casa, uma casa boa com flores e janelas grandes e escadas para que você subisse de dois em dois degraus até o andar de cima onde um quarto estaria esperando por você. E se você abrisse o pequeno trinco da janela e desse um empurrão, a janela se abriria toda e todo o céu entraria. Não haveria vizinhos intrometidos olhando, nem motocicletas e carros, nem lençóis e toalhas para lavar. Só árvores e mais árvores e muito céu azul. E você poderia rir, Sally. Você poderia dormir e acordar e nunca ter que pensar em quem gosta e quem não gosta de você. Você poderia fechar os olhos e não teria que se preocupar com o que as pessoas dizem, porque você nunca pertenceu a este lugar mesmo e ninguém poderia deixar você triste e ninguém pensaria que você é estranha porque você gosta de sonhar e sonhar. E ninguém poderia gritar com você se vissem você na rua no escuro escorada num carro, escorada em alguém, sem ninguém pensar que você é ruim, sem ninguém dizendo que isso é errado, sem o mundo inteiro esperando que você cometa um erro quando tudo o que você queria, tudo o que você queria, Sally, era amar e amar e amar e amar, e ninguém poderia dizer que isso é loucura.”
CURSOS NA ESCREVEDEIRA
não sei se pela quantidade de coisas que está acontecendo na minha vida ou se somente pela simples passagem do tempo, mas 2024 me assusta pela sua fugacidade. sempre tive essa sensação do tempo que atropela, da ansiedade em ler, fazer, ouvir e ver tudo o que quero a ponto de não me permitir repetir coisas, com a justificativa do tempo que é pouco, mas me parece que esse ano especificamente, está ainda mais acelerado. acordo sem acreditar que não é mais janeiro ou fevereiro, como se o tempo estivesse literalmente me escapando com o desespero me invadindo. nesses poucos (e muitos) meses, de tudo tem me acontecido, mas um dos acontecimentos mais bonitos, foi a entrada na Escrevedeira.
sempre fui apaixonada pela curadoria da programação, e a cada mês me surpreendo mais. por isso, como boa profissional de comunicação, destaco aqui os cursos mais legais (na minha opinião de leitora hehe) que acontecerão neste mês de abril:
Bartleby, O Escrivão ficou na minha cabeça por dias, e tem gente que não deve aguentar mais me ouvir falar sobre, mas prefiro não parar. em conversa com minha amiga Juliana Masuyama, que leu o livro de tanto que indiquei, ela se lembrou daquele trecho de Clarice Lispector que diz que tudo começa com um sim, inclusive a vida e o mundo e que, por outro lado, o não é o começo da morte. essa pulsão de morte está em Bartleby, um personagem apático e indiferente que parece não ter desejos próprios, e que passa a causar desconforto no outro pelo simples “prefiro não”, pela simples recusa em obedecer ou estar de acordo com as expectativas, o não que desestabiliza e nos faz entrar em contato com todas as recusas que já passamos, seja da vida, do outro ou de nós mesmos. é um livro passível de inúmeras interpretações e por isso, muito rico em gerar debates psicológicos, políticos e sociais. nessa imersão, o incrível Jeferson Tenório, se utiliza da singularidade de Bartleby para refletir sobre o tipo de personagens que queremos para o desenvolvimento de uma literatura mais elaborada e atenta ao mundo atual.
a querida Gaía Passarelli é uma grande referência quando falamos sobre newsletters, e obviamente não vou ficar de fora dessas aulas valiosíssimas. para quem já tem ou deseja criar a própria newsletter, a oportunidade vale demais!
dentre os temas que estão em destaque na literatura contemporânea, a maternidade vêm ganhando muito espaço (principalmente entre minhas leituras). seja pelo olhar de mãe ou pelo olhar de filha, a figura da mãe pode ser sinônimo de amor, perda, admiração, luta e até mesmo magoa ou raiva. focando em quatro maravilhosas autoras nacionais e internacionais, Beatriz Resende passará por narrativas que escrevem a mãe.