#42 - a beleza no cotidiano em poeta chileno, trilhas sonoras de filmes e outras aleatoriedades
Poeta Chileno, Um Dia, Sofia Coppola, 60 anos de golpe militar...
bateu uma saudade grande de trazer assuntos e indicações diversificadas por aqui. em quase todas as últimas edições, escolhi me dedicar a um tema específico, quando na verdade, a ideia deste projeto era abarcar várias formas de arte para além da literatura. obviamente que a literatura sempre estará em maior peso, com os trechos dos livros que me arrebatam e indagações que surgem a partir dai, mas quero me lembrar também de alternar com a música, trazer séries, contar sobre filmes, rir com memes, repostar colagens, indicar cursos, eventos, pessoas, artigos e qualquer aleatoriedade que seja parte do meu dia a dia caótico que consome muitas informações ao mesmo tempo como uma boa ansiosa 🙃.
Poeta Chileno foi uma daquelas leituras que me fizeram suspirar, sorrir, me emocionar a ponto de me perder em cada uma das páginas, encantada pela beleza do cotidiano no olhar narrativa de Alejandro Zambra. acostumada com leituras pesadas, me esqueci a delícia de livros que abraçam, contagiam e nos trazem a esperança de dias bonitos, calmos e simples, que fazem os olhos lacrimejarem com descrições verdadeiras e honestas de pequenezas da rotina que não significam nada e tudo ao mesmo tempo. poderia me estender em vários parágrafos para tentar transmitir a grandiosidade de Poeta Chileno, que se propõe olhar para diferentes temas, mas com certeza destaco esse cotidiano, o cotidiano do amor, da passagem do tempo e da vida:
“Só então se deu conta de que seu reencontro com Carla, nove anos depois, tinha sido, em quase todos os sentidos, como repetir na escola. Disse isso a ela naquela noite, muito tarde, os dois meio bêbados, e então repetiram, pela enésima vez, a cerimônia de se fazerem em pedaços na cama, uma cerimônia que queriam continuar repetindo indefinidamente, estavam totalmente dispostos à repetência eterna de uma vida que, sobretudo em noites como essa, lhes fascinava: entorpecidos pelo sexo, embelezados pelas gargalhadas, eram até capazes de saborear as palavras que se abriam e se confundiam como se tivessem acabado de aprendê-las: ritual, rotina, rito, rota, ruga.”
“Com o tempo se perde o ruído dos dias, torna-se difícil lembrar com precisão como a vida cotidiana soava, qual era nossa ideia de silêncio — qual era o repertório de sons inclusos no ruído branco: espirros, tosses, suspiros e bocejos, os carros e caminhões passando na rua, a gritaria esporádica de vendedores e pregadores, o barulho caprichoso da geladeira, as sirenes distantes, os alarmes e os pássaros que imitam os alarmes, as melodias assoviadas ou murmuradas, os tremores das portas, e inclusive as palavras, as frases plenamente articuladas em tons que não rivalizam com o silêncio. (…) Gonzalo, Carla e Vicente falavam muito entre si, claro, mas também falavam sozinhos: Gonzalo falava com a tela do computador e com o espelho e com a panela de pressão e com todo tipo de eletrodoméstico, enquanto Carla falava com o espelho, com as plantas e com ninguém, e Vicente falava com ninguém, apesar de que quando falava com ninguém parecia que estava falando com o gato. Os três sempre falavam com o gato, mas falar com o gato não é falar sozinho. E os três distinguiam perfeitamente quando os demais estavam falando sozinhos, e nem mesmo surgiam mal-entendidos, nem mesmo era necessário que alguém esclarecesse que estava falando sozinho. E talvez seja a isso que se refere quando se fala de famílias felizes. Sempre fumavam no jardim da frente. Sempre trocavam imediatamente as lâmpadas queimadas e as pilhas do controle remoto. Geralmente respeitavam os semáforos. Ocasionalmente usavam palitos de dente. Sempre compravam canela e alho em pó. Geralmente tinham azia. Geralmente tinham reparos a fazer e esperanças. Sempre enchiam as fôrmas de gelo logo depois de usá-las. Geralmente comiam ovos mexidos, ocasionalmente cozidos, nunca crus com limão nem meio cozidos. Sempre compravam pão francês, geralmente tiravam o mio-lo, ocasionalmente usavam-no para brincar de guerra. Geralmente mudavam os lençóis e as expectativas. Ocasionalmente jogavam cartas e dominó. Ocasionalmente brincavam de fazer sombras com as mãos. Nunca desfragmentavam o disco rígido. Nunca tiravam a tempo as folhas das calhas. Nunca dormiam com a televisão ligada. Geralmente Gonzalo ia ao estádio com Vicente, e ocasionalmente também com Carla, para ver o Colo-Colo, que naquela época geralmente ganhava, agradava e ocasionalmente goleava. Geralmente Gonzalo e Carla iam às passeatas, ocasionalmente acompanhados por Vicente, que era sempre o que mais gritava e aproveitava. Geralmente Carla e Gonzalo dormiam abraçados. Geralmente transavam quatro vezes por semana, e o mesmo menino que antes descia para se deitar na cama grande não descia mais. Geralmente Carla ficava por cima de Gonzalo, geralmente tinha orgasmos, geralmente mais de um, ocasionalmente mais de dois. Sempre, depois de fazer amor, ela ia ao banheiro. Ocasionalmente Gonzalo comia seu cu. Carla chupava o pau de Gonzalo geralmente pela manhã, quando voltavam depois de deixar Vicente no colégio e ainda tinham meia horinha disponível antes de sair para o trabalho. Geralmente, enquanto o chupava, ela se masturbava. Geralmente engolia o sêmen, ocasionalmente gostava de recebê-lo em seu rosto e sempre que isso acontecia ela dizia, rindo, que era bom para a cútis. Geralmente Carla pensava que viveria até os cem anos, sentia que era de certo modo indestrutível, mas ocasionalmente se surpreendia pensando na morte. Geralmente Carla pensava que, se ela morresse, Gonzalo continuaria morando com Vicente. Gonzalo também pensava isso. Ocasionalmente falavam de ter um filho, geralmente era Gonzalo quem puxava o assunto. “Outro filho”, dizia, geralmente, mas ocasionalmente o chamava de “meu próprio filho”. Geralmente Carla pensava que se Gonzalo morresse, ela passaria alguns anos de luto e isolamento, mas depois refaria sua vida com outra pessoa. Geralmente Carla esquecia por completo que Gonzalo não era o pai de Vicente. E isso acontecia também, ocasionalmente, com o próprio Vicente. Geralmente Carla pensava que ficaria com Gonzalo por toda vida. Geralmente Gonzalo pensava que ficaria com Carla por toda vida. Ocasionalmente Carla pensava que, em algum momento, num futuro impreciso, gostaria de dormir com outras pessoas. Ocasionalmente se deixava cortejar por colegas de trabalho que a achavam gostosa. Ocasionalmente Gonzalo fantasiava que dormia com suas alunas ou com outras professoras. Ocasionalmente pensava que, em algum momento, num médio prazo, acabaria fazendo isso. Geralmente Carla pensava que se pegasse Gonzalo com outra mulher morreria de raiva, mas no fim o perdoaria.”
essas páginas de Poeta Chileno estão entre as mais marcantes que passaram por mim até hoje. reli pelo menos quatro vezes seguidas só pra reviver a emoção gostosa de algo tão palpável, de imaginar as cenas na cabeça, com os olhos lacrimejando, encantada e ludibriada pelas belezas aleatórias que nascem da intimidade, do costume e dos dias que passam aparentemente todos iguais.
em paralelo, me deparei com alguns trechos do filme Um Dia pelas redes, que sou apaixonada (inclusive nunca li o livro e quero tentar em breve, mas completamente sem expectativas). lembrei do quanto me identificava com Emma, do quanto me agradou a ideia da história em apresentar a evolução e amadurecimento dos personagens com a passagem do tempo, a diferença imensa entre as personalidades que se atraiam e se afastavam na mesma medida, o amor que se torna várias coisas diferentes, a trajetória irregular das expectativas, os personagens que continuam ligados por suas insatisfações de mundos opostos, e essas insatisfações como imã do sentimento que vai tratando de juntá-los em diversas oportunidades, atravessando dias e anos. o tempo é o cenário de decisões e reencontros na vida desses dois, e o filme é lindo em inúmeros sentidos.
“Acho que você tem medo de ser feliz Emma. Parece que pensa que o caminho natural das coisas na sua vida é ser triste, sombria e macambúzia, e odiar seu emprego, odiar o lugar onde mora e não ter sucesso nem dinheiro, e Deus a livre de um namorado. Na verdade, vou mais longe: acho que você gosta de se sentir frustrada e ter menos do que queria ter, porque isso é mais fácil, não é? O fracasso e a infelicidade são mais fáceis, porque você pode fazer piada com isso. Você é linda, sua velha rabugenta, e se eu pudesse te dar um só presente para o resto da sua vida seria este. Confiança.”
para matar a saudade, me rendi para a minissérie que estreou na Netflix. com episódios curtos e dinâmicos, é uma boa pedida para passar o tempo e me serviu bem quando estava morrendo de preguiça de pensar ou escolher um filme dentre os milhares que ainda quero assistir. é fofo, bonito, inteligente e bem executado, mas passou longe de me agradar ou me emocionar tanto quanto o filme. aliás, o que mais me encantou foi a trilha sonora:
falando ainda em música e cinema, nas últimas semanas assisti também Priscilla (DISPONÍVEL NA MUBI), da Sofia Coppola, que me encanta com o figurino, fotografia, cores e tudo que envolve estética. aqui, a diretora se baseia no livro de memórias Elvis and Me, publicado em 1985, que traz o relato íntimo de Priscilla Presley sobre sua vida com Elvis. o relacionamento problemático começa já na diferença discrepante de idade, e se estende para a sensação de vazio e solidão da garota que se resume em ser esposa do cantor (sem nem terminar o ensino médio!!!!!) entre seus altos e baixos, entre ausências de meses, suportando casos com inúmeras mulheres. vivendo o suposto “sonho de qualquer mulher”, para além das situações de violências psicológicas, o que mais incomoda é o comportamento apático da personagem desconhecedora do mundo que a cerca, tornando-se um brinquedo fácil nas mãos do garanhão, literalmente um objeto que ele descarta quando se cansa e um porto seguro quando precisa de um, presa numa mansão com as melhores roupas e objetos como tentativa de distração, mas sem jamais conhecer qualquer gosto de liberdade, autenticidade ou afeto. Priscilla é atraída e fascinada pelo mundo de fantasia do cantor, pela ideia de dormir com o homem mais desejado do planeta, mas se vê completamente insatisfeita. é curioso que quase não sabemos nada sobre seus pensamentos, vontades ou opiniões, reforçando a figura anestesiada de telespectadora em sua própria vida, quase um fantasma. dentre alguns aspectos do filme, gostei demais da trilha sonora que representa bem a atmosfera sentimental e temporal:
por fim, destaco a importância de lembrar!
31 de março completou 60 anos do Golpe Militar de 64, e recomendo o artigo do (meu amigo) Vinicius Barbosa no blog da Intrínseca: A importância de nunca esquecer a Ditadura, que é uma ótima pedida ao refletir o papel da arte em um dos períodos mais dramáticos de nossa história, refletir como nascem as coisas, como são dados nomes e significados. um belíssimo artigo para não esquecermos de lembrar.
“Eu cresci numa rua de terra chamada 31 de março, no interior de São Paulo. Corri nessa rua, caí nessa rua, e nunca me perguntei por que tinha esse nome. A gente não costuma se perguntar daquilo que parece sempre ter existido. A rua de terra virou de concreto, mas o nome se manteve. Menos criança, parei de correr e de cair, mas continuei diariamente pisando sobre aquele caminho. O concreto virou asfalto, e o nome mudou para homenagear uma antiga moradora, avó de alguns meninos que cresceram comigo. Só aí eu percebi, já um adolescente, que as ruas não têm nomes. Elas recebem nomes. As coisas têm um começo, mesmo que a nossa memória não alcance, e se agora a minha rua homenageia alguém, antes ela comemorava alguma coisa. O asfalto sobre o concreto soterrou a memória. As crianças que hoje correm e caem naquela rua não se perguntam se ela tinha outro nome antes. Mas eu nunca mais esqueci que aquela rua, durante décadas, festejou o Golpe Militar de 1964.”
Essa edição conversou TANTO comigo! Poeta Chileno foi o último livro que li que me marcou. Sempre penso nele. A relação de Gonzalo com Vicente como um pai afetivo me toca muito pq também tenho um pai de criação. Diferente de você eu amei muito absolutamente tudo da série Um Dia. Me emocionei, sorri e chorei bastante kkkkk. Adorei os atores, a ambientação e a forma como a série conta a história. Também pretendo ler o livro em breve. Estou maratonando os filmes de Sofia Coppola e a estética é sempre o destaque. Fico maravilhado com cenários, cabelos, maquiagens, figurinos (destaque para Maria Antonieta). Ótimo artigo do Vinícius!
Adorei essa edição 🖤